sábado, 8 de janeiro de 2022

A doçura da docência

 Uma gripe aterrissada em pleno almoço de Natal me colocou de molho por um bom par de semanas, servindo para me lembrar de que os melhores planos não resistem ao ataque fortuito do imponderável. 

Estava devendo um relato dos meus primeiros dias, semanas, meses, como professor, mas a vida se ocupou de mim e os registros (como as fotos que esquecemos de tirar quando as resenhas e festas são realmente boas) foram ficando adiados. Dias de chuva vão se enfileirando, enquanto acrescento à gripe a recuperação de uma pequena cirurgia - decido escrever.

São Pedro da Aldeia, onde servi com contrato temporário entre 6 de agosto e 16 de dezembro de 2021, foi minha cidade de batismo como docente - lá experimentei minhas primeiras realidades escolares e administrativas, algumas friezas de colegas que não quiseram se dar ao trabalho de travar contato com o "temporário", e a doçura do trabalho de mestre de crianças e jovens. Em São Pedro, abrindo a alma para alunos felizes por estarem tendo naquele ano, pela primeira vez, um professor de língua portuguesa, dividi a aflição de estar começando uma carreira nova: "Não comecei a trabalhar hoje, como vocês podem imaginar pela minha careca e pelos persistentes cabelos brancos - mas sou novo nisso, estou aprendendo a ser professor".

Não sou particularmente babão (embora tenha lá meus gatilhos pavlovianos), mas uma década de trabalho corporativo insatisfatório se derreteu quando percebi o brilho feliz de reconhecimento nos olhos de alguns de meus alunos em minha segunda aula. Não há paga para esse tipo de felicidade. Ou para a emoção de ver o próprio nome preenchido pela primeira vez no campo "Professor:".




Em Rio das Ostras, onde sou efetivo, escolhi uma escola-casa (chama-se Padre José Dilson Dórea) que parece ser um ímã de almas boas. A eles, que me acolheram desde o primeiro minuto como colega-calouro um tanto retardatário na carreira de ensinar, narrei todos os dias os meus encantamentos com o carinho que começava a colher em São Pedro, com meus aluninhos de 7º, 8º e 9º anos. Alguns já me assaltavam com perguntas sobre o ano seguinte, se poderia eu ser seu professor em 2022; outros brincavam com meu nome no quadro, juntando a ele o vermelho amoroso do coração; uma aluna de sétimo ano, em uma aula de Produção Textual que eu sequer começara (haviam se passado apenas 3 minutos, nos quais eu estava colocando minhas coisas sobre a mesa, cumprimentando os alunos e puxando algum assunto de gente-para-gente), saiu-se com uma frontal exaltação sobre a minha "aula muito boa", ao que retruquei: "Mas como assim...? Eu, bom professor? Mas nem fizemos nada ainda?"



- Professor, já dá pra ver que a sua aula é boa. O que mais tem é professor que entra na sala, vira pro quadro, fica escrevendo um monte, nem olha pra gente; depois, senta na mesa e manda a gente copiar, fazer dever. Nem quer saber de nada da gente.

Ontem, falando com minha irmã que mora em Toronto, disse a ela que sei bem dos meus limites; sou um péssimo professor de português ainda. Minha didática é incipiente, ainda não domino meu espaço, ou meu tempo, não sei com segurança que textos usar, quais as melhores abordagens ou exercícios. Sei que tenho muito a melhorar e mora em mim um desejo sincero de fazer isso. Como falei a meus alunos em todas as primeiras aulas que dei, meu propósito é esse: aprender a ser um professor melhor.

Mas, se sou tão cru como profissional de língua portuguesa, acho que posso dizer que não entro em campo igualmente verde como educador. Meus alunos, em especial os de São Pedro da Aldeia, com quem as trocas em sala foram mais intensas (o retorno presencial em Rio das Ostras não foi o esperado), me fizeram crer assim. Em turmas diferentes, ao final do último encontro, recebi elogios espontâneos e mesmo abraços. Dividi bolos e refrigerantes e bombons. E votos de felicidade pela vida que se estendia para além daquelas salas e convívio. Esses 5 meses de estreia docente em 2021 me mostraram o quanto da docência bem sucedida reside na doçura de humanidade que levamos (ou não) para frente daqueles que são humanos como nós - não números, não estatísticas, não nomes num diário.

Sentirei saudades dos meus primeiros alunos de São Pedro da Aldeia, com os quais troquei gestos de amor verdadeiramente freireano. Espero conseguir acompanhar alguns de seus voos por aí, com a ajuda das redes sociais. 

E antevejo com satisfação e orgulho os próximos meses e anos de convívio com a comunidade escolar da qual passei a fazer parte e com a qual quero contribuir com toda a minha imperfeição curiosa: Fernanda, Gabi, Eva, Carol, Rodrigo, Hugo, Thiago, Gabriela, Luciana, Pedro, Marcos César, Vinicius, Alex, Ana, Isa, Juvenal, Teo, Layon, Lourdes, Felipe, Fábios (são três!), Patricia, Orbela, Roberto, Marcão, Jefferson, Cristiano, Bia... Que bom ter me juntado a vocês, que bom ter plantado tantas sementes de amizade assim, aos 51 anos.

Ninguém solta a mão de ninguém... E ninguém deixa o Padre. :-)







sábado, 7 de agosto de 2021

Convalescendo da própria vida

 


Jogando a frase no Google, a plataforma me retorna zero resultados. Então me convenço: as palavras são mesmo minhas, anotadas mais de dez anos atrás em um bloco de fragmentos aleatórios, quando eu iniciava uma trajetória em busca de cura para uma vida profissional instável, pouco segura e que não iria mais perdoar as décadas de calendários que já eram mais de quatro.

Ao colocar meu selo musical Rock Symphony, a produtora toda, em fogo brando de pão-tornado-hobby, eu procurara outras oportunidades no mundo do trabalho, na área educacional, no retorno à academia. Sentia-me assim mesmo, "convalescendo da própria vida" (outro título para um futuro livro), vida de escolhas e caminhos que, qual planta crescida sem poda, se desenvolvera atabalhoadamente, causando danos e sofrimento, e precisava agora de aparos, de sacrifícios brutais para novamente verdejar e permitir sorrisos.

Em 2010, eu estava entre-casamentos, sofrendo, fazendo sofrer, tentando fazer de uma casa em construção um arremedo de lar, mas pela primeira vez fazia planos. Planos de verdade, como meu amigo holandês Will Plooster sempre martelara pra mim: metas, objetivos, alvos, caminhos de ação. De lá pra cá, não mais produtor musical ou vendedor de discos, passei por departamentos de desenho instrucional, consultorias educacionais e empregos corporativos, fiz uma pós em EAD, engatei um mestrado (que rendeu livro), depois um doutorado, ambos como alguém rendido à sua maior paixão: os livros e as arqueologias do papel.


 
Minha convalescença é de estágios programados: às pós-graduações, somei uma licenciatura em Letras, concluída em janeiro deste ano, com a qual pretendia conquistar vagas em concursos na Educação. Vinha fazendo provas desde 2018 e, para minha alegria, saiu hoje minha primeira nomeação - professor de Língua Portuguesa e Literaturas do município de Rio das Ostras, fruto do certame de dezembro de 2019. Na época, precisei piorar minha classificação para ter tempo de concluir a graduação e não ser convocado de imediato. Deu certo. 



Essa vitória, esse começo de recomeço, eu dedico especialmente (sem esquecer nenhum dos outros envolvidos, como minha esposa , meu pai e meus filhos...) à minha mãe Leila, cúmplice das dores dessa árdua travessia, que luta hoje contra dois males tão sérios quanto uma vida em desgoverno como a minha: um Parkinson debilitante e uma depressão desesperadora e atroz. Se para o primeiro não há cura, mas tratamento e acomodação, para o segundo - tratável, vencível - eu desejo uma convalescença como a minha (porque os demônios da minha mãe são igualmente e tão somente seus).

É preciso convalescer das próprias escolhas, às vezes, mãe; mesmo quando estas tenham sido gestos de amor. Bons e novos dias para nós! E, colegas, me aguardem, porque sou eu mesmo que agora chego, inacabado, socrático e freireano, mera semente em formação, querendo, como escreveu Leila em 1976, "ser mais Leonardo": docemente professor.


terça-feira, 1 de junho de 2021

Foie Gras

As fezes dos pombos ainda me incomodam um pouco, não consigo deixar de pisar e fazer carimbos com elas por onde ando, no terraço do prédio na Rua da Conceição. Preferia a praça, no Rink, mas a todo momento era obrigado a dar explicações sobre as gaiolas com os pombos e o porquê de quando em quando soltar um deles para o ar, num movimento meio bandido.

Daqui do alto, o ruído da cidade, calado pelos metros que nos separam, me ensopa menos a alma. E eu posso me concentrar. E pensar no que há de louco no mundo, e nas vagas de desigualdade que não encontram eco algum nas pessoas.



Abro a gaiola, os pássaros mais agitados que de costume, agarro um dos novos – sempre agressivo, esse aqui, seu bico me prova o sangue – e empurro goela adentro, papo adentro, mensagem adentro, os  grãos de veneno de ação rápida.

Meus dedos relaxam, a outra mão fecha as portas da gaiola para que haja um novo dia amanhã, e meu mensageiro voa. O pombo voa, morre aos poucos, alguns minutos, ou muitos, qual bucha de balão caprichosa ao escolher seu lugar de pousar.

Em alguma rua, meu rato-de-asas vai desabar, vomitando, assustando alguém, mostrando à cidade o denominador comum mais cru e direto do que temos de igualdade.

Vejo o flanar das asas, menor, menor, menor, subir, sumir, desço as escadas em busca das ruas, para voltar amanhã e semear lembretes, semear a morte pela cidade que nada ouve, nada vê. 


Leonardo Nahoum, 19 de março de 2010. 


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Onze anos atrás, quando havia recém-começado a dar expediente como desenhista instrucional no CEDERJ (onde depois conquistei minha licenciatura EAD em Letras), fui fisgado por uma chamada para um concurso de microcontos da ABL. Estava entre casamentos, revivendo alguns hábitos adormecidos (como o de me sentir escritor), e logo sentei para produzir algum texto que me permitisse concorrer. Mal terminei a primeira versão, decidido a reduzir as 250 e poucas palavras para o limite de 140 do edital, descobri que eram na verdade... 140 caracteres. Um tweet. Por isso, o texto agora não mais inédito ficou assim, desse tamanho mesmo. (escrevi um conto-tweet pra concorrer, chamado A4, mas ele fica para outra postagem futura). 

O plano é que Foie Gras (gosto dele, já viram...) faça parte, no futuro, de um volume de narrativas curtas chamado Amores intestinos. Para os colegas professores, o título (e o texto) podem servir bastante bem, penso, para uma aula sobre Intertextualidade. 


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Aula de Metalurgia

Agora, fica olhando pra ver se não vem ninguém.

Paulinho era um ano mais velho que eu, mas estudamos na mesma sala até ele perder de ano e ter que mudar de escola para uma que aceitasse alunos em "dependência". Mesmo assim, nos víamos sempre perto da casa dele, em Icaraí, percorrendo as ruas em nossas rotinas de pequenos infratores urbanos: agachados junto às rodas pretas dos carros, procurávamos o ponto certo para enfiar a chave de fenda que faria soltar os pequenos pesos de chumbo do balanceamento; matéria-prima para ser derretida na cozinha do apartamento de classe média na beira da praia, nossas primeiras aventuras pelo mundo da metalurgia, dos moldes de durepoxi e das fichas falsas de fliperama.



- Conseguiu? - perguntei quase num sussurro, o pescoço jogando os olhos ora para a esquerda, ora para a direita, tentando adivinhar em alguma das pessoas que passavam o perigo-mor de um dono de carro ou um adulto indignado com as nossas molecagens.

- Tá quase, tá quase... Presta atenção aí. 

A fita adesiva com as bolotas de chumbo de soltou, finalmente, e não perdemos mais um segundo abaixados. Ganhamos a rua, transformando a adrenalina em velocidade, parceiros que éramos de um crime que parecia nos fazer quase a mesma pessoa de onze anos, a mesma sombra de braços e pernas misturadas que corria e trançava risadas e pequenos comentários: agora, entrar no prédio, derreter o chumbo, derramar com cuidado no molde, deixar esfriar, soltar a ficha, repetir até acabar o chumbo.



A tarde parecia encomendar chuva, o céu escurecia os prédios da cidade onde, talvez em outros dias, houvessem passado outras parelhas de amigos perfeitos como nós: potros falantes em um carrossel que o tempo não apaga, quando muito enferruja e espaça os galopes.

Mas não íamos mais a parques; nossas horas vagabundas agora eram com esses caça-níqueis modernos, de telas coloridas e bolas cromadas enlouquecidas, uma barafunda sonora e visual no meio da qual trocávamos olhares ternos, sem saber que eram ternos, adivinhando, sem realmente entender, que aquelas tardes de melhores amigos coroariam nossa infância. Pequenos furtos, fichas de flíper falsas e tudo.


Rio de Janeiro, 15 de maio de 2014. 

(para Marcelo 'Konga' Xavier, o "Paulinho", e para todos os amigos que não se afastam nunca - são apenas a distância dos galopes espaçados)

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Escrevi esse pequeno conto-crônica como exercício para uma das aulas da Oficina de Literatura Infantil e Juvenil que fiz na PUC em 2014, oferecida pelas professoras Márcia Cristina Silva e Ana Letícia Leal. Como tenho aproveitado a pandemia para dar alguma organização a (literalmente) décadas de todo tipo de papel, o textinho apareceu e... achei que merecia o blog (ou o blog o merecia). Publicado está.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Melville, Poe, Soveral: buscando a própria identidade na multidão (em um mundo de maricas)

Faz alguns meses, consegui lançar mais um livro inédito de Hélio do Soveral (A fonte da felicidade), que descobri durante a longa pesquisa de doutorado. Dentre outros projetos que me movem, ultimamente, e que têm me ajudado a equilibrar humor e sanidade em meio a isolamento, crises domésticas, meia idade (fiz 50 em setembro...) e persistente desemprego, está a organização de um volume com a poesia de Edgar Allan Poe traduzida e comentada por Soveral ao longo de toda sua vida. Já recrutei para o barco Dagomir Marquezi, para a orelha; Rubens F. Lucchetti, para o prefácio; e Alexander Meireles da Silva (UFG), para a apresentação.





Poe foi o grande expoente e modelo literário para Soveral; era o seu herói. Ele segue despertando paixões e vive um momento de renovada popularidade, por conta principalmente de seu papel no delineamento da chamada ficção detetivesca, no despertar ocidental para o lugar da cidade em nosso imaginário e ainda para o próprio erguer-se da literatura de seu país natal. Tenho muito de Poe ainda para descobrir e ler, e trabalhar nesse livro sobre sua poesia será um crescimento para mim interessante. Melville é outro de que gosto bastante, e a quem preciso retornar. Nos meus vinte anos, li com prazer e vagar uma edição de Moby Dick da Francisco Alves (penso em voltar ao livro agora releendo-o na versão da Cosac Naify). Nesse último semestre de faculdade de Letras, pude comparar os dois autores em muito boas páginas da disciplina de Literatura Comparada, tocada exemplar e apaixonadamente pela professora Anna Faedrich (UFF) e pela tutora Claudine Varela.



Antes de continuar, cabe dizer que mais do que nunca a literatura é necessária. Bernardo Carvalho recentemente escreveu sobre isso, atacando as medievalidades do governo Bolsonaro e frisando que, longe de secundária/os, a arte, os livros, o literário, se impõe/m como força humanizadora em meio a torrentes de pura destruição. Dias depois da declaração do presidente eleito brasileiro, de que o país deveria deixar de ser formado por "maricas" e enfrentar (???) o coronavírus, circulou pelas redes um vídeo curto, do carnavalesco Milton Cunha, colocando em palavras toda a devida indignação necessária ante tamanha estupidez. Recomendo fortemente que o assistam.

Enquanto repiques da pandemia se chocam com dizeres brasileiros abomináveis e com o estremecimento Trumpiano da democracia mais poderosa do mundo em uma pororoca que parece tudo levar em seu caminho, a literatura (e o que em torno dela existe de busca identitária individual e coletiva) grita sua relevância.


Pensando novamente nos EUA que nos brindaram com o veneno Donald Trump, mas também com os bálsamos Melville e Poe... É preciso olhar para o que chamamos agora de literatura norte-americana (e seus primórdios) tendo em mente a noção de literatura tardia; como no Brasil ou como na Rússia, é apenas no século XIX para o XX que começamos a poder falar de uma literatura estadunidense de língua inglesa, reflexo cultural amadurecido de pouco em pouco ante a independência política do final do 1700s. Ao destacar como alguns de seus expoentes as figuras de Edgar Allan Poe e Herman Melville, Faedrich e Figueiredo aproximam os autores em parte pelo que de modernizador eles propuseram com suas obras: os séculos modernos são os séculos do olhar, são os séculos do ser humano visual, transformado cognitivamente e perceptivamente pelas transformações tecnológicas que já vinham plasmando nosso modo de viver desde antes da Revolução Industrial. No mundo eminentemente urbano agora, privilegiamos mais do que tudo o visual, o imagético, o descortinável. Poe, diz Faedrich, é “reconhecido por ser o pai da literatura policial, [com uma obra na qual] a questão do olhar é fundamental (...), nesse sentido se aproxim[ando] de Melville e seu capitão Ahab, cuja obsessão o impede de ver” (FAEDRICH et al, 2016,, p. 254). Embora menos canônico que Melville, que inscreveu algumas de suas prosas, como Moby Dick, entre as obras máximas do romance ocidental de todos os tempos, Poe tornou-se ainda assim uma figura fundamental para a literatura norte-americana, mas também a (contemporânea) mundial pelo seu profundo e profícuo diálogo com a cidade, com a urbe que se impunha como o novo locus humano por excelência. Ao fundar (pra valer) a literatura policial com os contos de seu Monsieur Dupin e ao penetrar na psicologia dos flâneurs e das massas em textos como “O homem na multidão”, Poe aproxima-se da questão identitária (norte-americana, mas não só) tanto quanto Melville em sua busca marítima da verdade metaforizada em baleia branca.

Como todo grande livro, Moby Dick comporta diversos níveis de leitura, entre eles o aventuresco, o que justifica sua escolha para inúmeras adaptações infantojuvenis desde seu lançamento. Sua fruição plena é um grande mergulho nos arrebatamentos de que a alma humana é capaz: ira, vingança, obsessão, destino, comprometimento. Ahab, o icônico capitão a quem a baleia devorou uma perna, é tão incapaz de se comportar de outro maneira como Bartleby é de se conformar com tarefas que “preferiria não fazer” (como diz inúmeras vezes ao longo da noveleta que leva seu nome). Ahab não consegue se desviar de seu destino, como Bartleby não consegue atender às demandas da sociedade que dele solicita ao menos alguma explicação; corações em enigma, indecifráveis até mesmo para Dupin ou Sherlock Holmes – e por isso tão atuais, tão clássicos, tão instigantes e ainda tão cheios de voz para nos falar.    

Somos todos pequenos barcos no oceano infinito, ou irrelevantes (porque imediatamente substituíveis) Bartlebys em anônimos escritórios, todos homens modernos na imparável multidão de Poe “tenta[ndo] se compreender, buscando o seu lugar na sociedade” (FAEDRICH et al, p. 268). A semelhança das figuras todas citadas (de Melville, de Poe), reunidas em torno desse vaguear humano, lembra mesmo o flâneur de Charles Baudelaire, “o detetive da cidade, percorrendo a cidade das transformações urbanas que ocorrem no século XIX” (FAEDRICH et al, p. 269) em busca tanto do anonimato e da segurança das multidões quanto da identidade que (qual mítica baleia branca) sonha lá encontrar.

Em seu livro A alma encantadora das ruas, no texto que abre o volume, João do Rio discorre apaixonadamente sobre a rua, sobre como ela molda o homem moderno, como diz de seu caráter e vida e coração. Para João do Rio, flanar é (des)ocupação artística obrigatória, sem a qual é impossível conhecer de verdade um povo, uma cidade. Mas o homem precisa tornar-se relevante para o mundo – seja por seu apreço por enigmas, seja por sua resistência bartlebyniana, seja por perseguir baleias brancas; ele precisa de uma identidade (como as literaturas). Como diz o escritor, “o homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua” (RIO, 1997, p. 74, grifo nosso), ao mundo, à sociedade, à vida. Afinal, seja ele um Moby Dick ou um Quixote, seja ele um caso de Dupin ou de um Holmes, “esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós” (RIO, 1997, p. 75) deve ser (Modernamente) único, idiossincrático, irrepetível – só então... só então... Humano.

Que neste domingo, dia 15 de novembro, este país de maricas vá às ruas, encantado-encantador, e recomece nas urnas a resgatar sua própria alma (plantando algo ainda maior para 2022), como fizeram há pouco os norte-americanos; como já escreviam e inspiravam, por seu talento e beleza, não Trump (ou seus fãs patetas locais), mas Melville e Poe.



REFERÊNCIAS

FAEDRICH, Anna; FIGUEIREDO, Eurídice. Literatura Comparada: volume único. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 3)

Está aflito com os arbores da vida adulta, meu filho do meio "emprestado". Desde que o conheci, quase dezessete anos atrás, rugas tensas sempre foram a principal marca de expressão em seu rosto arredio de dois anos e meio e de agora quase dezenove. A proximidade da obrigatoriedade imposta por tomadas de caminho tem feito com que meu menino "emprestado" seja visitado por enxaquecas, pequenas crises de ansiedade e mal-estares próprios do "coming of age": pra que lado vou? serei bom de verdade fazendo alguma coisa? conseguirei encher meu pai de orgulho e minha mãe também? que faculdade fazer? que vida profissional abraçar? que projeto de mim serei digno de ser?



Quando eu estava sai-não-sai de uma (primeira) depressão, nos idos de 1997, uma das bizarrices que coloriram aqueles dramáticos dias foi uma visita a uma numeróloga (essas coisas que a gente faz sem acreditar, deixando margem pro "vai-que...; vai-que te ajuda a se conhecer melhor"). Eu estava ainda em meu primeiro casamento e alguns anos distante da paternidade, mas a moça cravou, esotérica mas cheia de conhecimento e certeza de causa: "estou vendo três crianças fazendo parte da sua vida". Meus filhos (de sangue) Henrique vieram tempos depois, com diferença de seis anos entre eles. Jojô, Jônatas, chegou no meio, fruto do primeiro casamento de minha esposa, e devo dizer que fui talvez algo ardiloso quando de nosso primeiro encontro, talvez pela culpa que sentia por ter tido parte no lar desfeito que era agora sua casa: comprei meu menino "emprestado" com um bombom - um Serenata de Amor ou um Sonho de Valsa-, que ele muito desconfiado não recusou, e de lá pra cá celebro num canto muito meu do coração todo sorriso que recebo dele, toda manifestação de amor mais física que conseguimos trocar. Porque elas sempre foram um desafio muito difícil pra mim.

Semanas atrás, vendo um dos episódios da série "For all mankind", da Apple (que basicamente descreve uma linha temporal alternativa na qual os soviéticos chegaram primeiro à Lua), fiquei pensativo ao ver e rever a cena na qual o astronauta interpretado por Joel Kinnaman (de "The Killing" e "Altered Carbon") está na calçada de sua casa americana de classe média dedicando alguns parcos minutos de atenção ao filho que pouco o vê. Aulas de bicicleta. O pináculo do heroísmo americano grita com o pequeno, é rude ao avaliar suas quedas que se repetem, toda vez que o pai impulsiona a bicicleta sem qualquer outro tipo de apoio, sem vir correndo atrás, com a paciência de quem deveria esperar asas fortes de sua cria antes de qualquer empurrão para fora do ninho. Lembrei, claro, de meu próprio pai me ensinando a andar de bicicleta e como eu me recordo dele segurando a Monark pela parte de trás, conforme eu me ajeitava, ouvindo sempre sua voz firme e encorajante, até que o equilíbrio "acontecia" e, surpreso, eu olhava para trás para constatar que meu pai, afinal, me soltara dizendo (sem dizer): "Vai...".

Tudo isso para, claro, voltar a Jojô e a todo conflito que sempre foi para mim equilibrar meus desejos de oferecer carinho e por outro lado respeitar meus limites muitos consolidados de nunca querer tomar o lugar do pai dele, presença constante e absoluta (por exemplo) em todos os seus finais de semana desde a separação. Conforme ele ia crescendo e o "Tio Léo" se tornava uma parte não-negligenciável de sua vida afetiva, de sua formação (para o bem ou para o mal), íamos, eu sinto, tateando essa zona de penumbra na qual nosso amor por vezes podia se manifestar - mas de cada abraço que consegui enrolar nele, de cada beijo que logrei pespegar em seu rosto, dez outros ficaram pelo caminho, tolhidos por certo respeito a um outro papel (o de pai "pai") e a um outro lugar e tempo. E respeito à voz do sangue, também. Tenho, sempre tive, muitas dúvidas sobre até que ponto deve-se refrear apoio, afeto, mesmo em casos assim, quando um padrasto não quer confundir uma criança querida sobre quem é seu pai. De qualquer forma, meu menino "emprestado" é meu terceiro tesouro e, mesmo envergonhado por uma economia de afagos e carinhos que nunca fez jus ao meu amor por ele, digo aqui para sua leitura que não consigo imaginar um mundo onde nossas vidas não sejam assim, emboladas, na presença dos casamentos e na relativa distância das separações.

Enquanto me preparo - com alegria - para terminar minha licenciatura em Letras e começar uma nova carreira como professor de Língua Portuguesa e Literatura, são dele os mais marcantes exemplos iniciais que pretendo levar pra minha verde e crua prática: o de quando ele dizia "quatros", extrapolando como toda criança linguisticamente brilhante o fonema "s" marcador de plural que ele já identificara em "dois" e "três", e que prova o como já somos mestres no idioma que falamos; e o de quando sua mãe, sem tempo para dar uma explicação mais demorada sobre os elementos do cabeçalho de uma tarefa da escola, disse a ele simplesmente que o "ano" era sempre daquele jeito, o que fez com meu menino "emprestado", na série seguinte, tascasse o ano anterior, de maneira automática, em todas as datas que escrevia.

Hoje assistiremos a um desenho juntos, a convite dele (coisa rara), e espero que haja espaço, entre uma e outro cena, para um afago, quem sabe um cafuné meio sem jeito meu. E que ele continue, nas brechas que cabem a mim, a dividir vezenquanto comigo suas dúvidas, seus anseios ainda mal concebidos, seus choros e risadas, que seguem tão luminosas quanto nos distantes dias em que seu melhor amigo era um robô.





quinta-feira, 9 de abril de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 2)

O assunto "filhos" parece estar em alta. Seja porque estamos sendo obrigados a uma convivência familiar mais intensa com os pequenos (ou nem tão pequenos), seja porque as mortes pandêmicas extemporâneas nos fazem refletir mais sobre nossa própria existência fugaz - uma espécie de "Memento mori" que as GloboNews da vida e nossa conectividade 24x7 repetem incessantemente, com tom ora alarmista, ora pedagógico, ora necessário, ora apenas um pouco demais -, não são poucos os cronistas que têm visitado o tema nos últimos dias. Aliás, embora termo comum de dois gêneros, tenho apreciado bem mais AS cronistas que tenho lido nos últimos anos do que seus colegas de cromossomos mais variados: Tati Bernardi, em réplica a si mesma depois de meio que vomitar verdades sobre o duro (e nada róseo) viver-em-família, deu um belo depoimento sobre sua opção pela maternidade (ainda que em meio a muitas dúvidas), no texto "Tenha filho"; já Mariliz Pereira Jorge, às voltas com suas próprias angústias pessoais e a coragem que diz não servir sempre pra tudo, pondera em "O que fiz da minha vida?" se ter escolhido não ser mãe foi mesmo a trajetória mais acertada.

Fato é que, ao elegermos a vinda dos filhos - e aqui me lembro de uma professora de mestrado e doutorado na UFF, Beth Chaves, comentando os dizeres de uma amiga sua sobre o que mais a amedrontava na questão: a irreversibilidade da coisa; seu caráter "sem volta" -, rejeitamos todo e qualquer recall, toda e qualquer possibilidade de que nossa vida tenha a mesma relevância de antes daquele primeiro choro inaugural, daquela primeira tomada de colo, daquele processo de "desempoderamento" que o sangue do nosso sangue traz.

Sei que muito da sedução da paternidade/maternidade, para muitas pessoas, reside numa fantasia do filho ou da filha como continuação de si mesmo, como uma instância biológica de repetição que será capaz de fazer melhor o que você já fez, de consertar os erros em que você caiu, de satisfazer desejos e aproveitar oportunidades que você desperdiçou, de conseguir aumentar o tamanho do roçado ou do capital da empresa ou da clientela do escritório... Não à toa, a sabedoria popular parece traduzir tanto essa nossa fissura inconsciente (ou talvez sua porção genética nem a faça tão assim) quanto o determinismo que, muito antes de Gregor Mendel, nós como raça já sabíamos operar entre nós, animais: "filho de peixe, peixinho é"; "an apple doesn't fall too far from the tree".

(e aqui vou me privar de fazer comentários sobre política contemporânea e dinastias à brasileira, embora a língua e os dedos cocem que só)

Cervantes, já no primeiro parágrafo de seu "Quixote" (sim, como muitos de vocês, estou aproveitando a quarentena para tentar colocar antigos projetos em prática: ler finalmente a história do fidalgo da Mancha é um deles), segue por esse tom ao pedir desculpas logo de saída ao leitor dizendo que "gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar. Mas não consegui contrariar a ordem da natureza, em que cada coisa gera seu semelhante" (página 41 da tradução de Ernani Ssó, em edição de 2012 da Penguin Classics / Companhia das Letras; os grifos são meus). Como todos os pais (e como Cervantes com seu livro), sempre desejei que o bem fosse a estação com mais dias no calendário dos meus três meninos; mas nunca foi sua semelhança com meus trejeitos, com meus contornos ou com meu passado o que me encantava em nosso romance-de-cavalaria-real a oito mãos. O que sempre me encantou mais foi o que eles tinham de só seu, o que os fazia criaturas únicas e jamais por essa terra antes imaginadas.

A novidade que cada filho traz não só à existência dos pais como ao universo em seu todo é que me parece ser o verdadeiro milagre, a verdadeira bênção de se fazer a opção do "tê-los para sabê-los". O indecifrável que há em cada um deles, o potencial indevassável de cada uma de suas vidas em processo é o que verdadeiramente traz esperança e alento ao mundo. Mais que nunca, são eles o futuro (mas um futuro em aberto, ainda velado e por isso instigante); nossas crianças.

Hoje faz aniversário meu filho Henrique, meu mais velho de três. Duas décadas me jogando na cara quantas solas de sapato eu já gastei, quantos dias eu já vivi, quanto ainda me falta para aprender. Com o muito que nos amamos, nunca conseguimos muita trégua para nossa convivência, com os sacolejos que minha separação da mãe dele nos fez (a todos) passar. Conforme ele tem crescido e se tornado "his own person" (recordando aqui um e-mail antigo que recebi do guitarrista Nick Barrett, do grupo inglês Pendragon), temos procurado construir mais pontes que abismos entre nós. Por exemplo, mandamos músicas novas um para o outro, tentando fazer melhor que os algoritmos de Spotifys e Youtubes da vida; sugerimos leituras, filmes; cultivamos conversas. No meu caso, procuro ser para ele alento "fingindo" que sei mais dos mistérios da vida, quando ele precisa de um porto seguro pra chamar de seu.

Henrique, ao nascer, foi um grande ato de fé sussurrado a mim (e à mãe dele) pelo mundo. Fé em que tudo se transforma, fé em que os filhos poderão porque serão; fé em que tudo passa. E que isso é bom.

No bairro onde moro, em Maricá, vivemos numa quase roça, onde há muita gente humilde e casas bem pobrinhas, onde o susto que se está vivendo pela atual emergência pública não deve ser pouca coisa. Ainda assim, as pessoas têm coragem e humanidade para impulsionar as outras pessoas, dar seu próprio testemunho de força e resiliência - como nessa porta que fotografei, em uma saída essa semana pra comprar pão.





Fé, gente (em Deus, na ciência, nos filhos, no irrepetível da vida...). Como escreveu minha anônima vizinha, tudo vai passar.

Pra terminar esse longo texto, queria deixar com vocês um poema escrito em 2002 para Henrique, quando eu estava em turnê com a banda Focus no Chile, e um áudio com a canção "Já vai tarde", do Phill Veras, interpretada pelo meu filhote, num desses dias em que estávamos procurando artistas que nos lembrassem o Los Hermanos.

Fiquem todos bem!

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Viñas da ira boa


Meu filho Henrique, sabotador de outras alegrias.

Meu amor Henrique, embotador de todos os demais prazeres.

Meu lorde Henrique, destruidor de cada um dos espaços de tranquilidade e desapego;de todas as horas em que eu me achava livre, sem dever nada a ninguém.

Meu captor Henrique, que cresceu olhos para me vigiar até quando dorme, através dos meus.

Meu encanto Henrique, que me tornou obsoleto e defensivo, despedaçado por tudo aquilo que não me cheira a teu; vinhos chilenos, paisagens de Viña ou amizades holandesas.

Leonardo Nahoum (Viña del Mar, duas da manhã de primeiro de novembro de 2002)

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Henrique Barreira interpretando Phill Veras