sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Melville, Poe, Soveral: buscando a própria identidade na multidão (em um mundo de maricas)

Faz alguns meses, consegui lançar mais um livro inédito de Hélio do Soveral (A fonte da felicidade), que descobri durante a longa pesquisa de doutorado. Dentre outros projetos que me movem, ultimamente, e que têm me ajudado a equilibrar humor e sanidade em meio a isolamento, crises domésticas, meia idade (fiz 50 em setembro...) e persistente desemprego, está a organização de um volume com a poesia de Edgar Allan Poe traduzida e comentada por Soveral ao longo de toda sua vida. Já recrutei para o barco Dagomir Marquezi, para a orelha; Rubens F. Lucchetti, para o prefácio; e Alexander Meireles da Silva (UFG), para a apresentação.





Poe foi o grande expoente e modelo literário para Soveral; era o seu herói. Ele segue despertando paixões e vive um momento de renovada popularidade, por conta principalmente de seu papel no delineamento da chamada ficção detetivesca, no despertar ocidental para o lugar da cidade em nosso imaginário e ainda para o próprio erguer-se da literatura de seu país natal. Tenho muito de Poe ainda para descobrir e ler, e trabalhar nesse livro sobre sua poesia será um crescimento para mim interessante. Melville é outro de que gosto bastante, e a quem preciso retornar. Nos meus vinte anos, li com prazer e vagar uma edição de Moby Dick da Francisco Alves (penso em voltar ao livro agora releendo-o na versão da Cosac Naify). Nesse último semestre de faculdade de Letras, pude comparar os dois autores em muito boas páginas da disciplina de Literatura Comparada, tocada exemplar e apaixonadamente pela professora Anna Faedrich (UFF) e pela tutora Claudine Varela.



Antes de continuar, cabe dizer que mais do que nunca a literatura é necessária. Bernardo Carvalho recentemente escreveu sobre isso, atacando as medievalidades do governo Bolsonaro e frisando que, longe de secundária/os, a arte, os livros, o literário, se impõe/m como força humanizadora em meio a torrentes de pura destruição. Dias depois da declaração do presidente eleito brasileiro, de que o país deveria deixar de ser formado por "maricas" e enfrentar (???) o coronavírus, circulou pelas redes um vídeo curto, do carnavalesco Milton Cunha, colocando em palavras toda a devida indignação necessária ante tamanha estupidez. Recomendo fortemente que o assistam.

Enquanto repiques da pandemia se chocam com dizeres brasileiros abomináveis e com o estremecimento Trumpiano da democracia mais poderosa do mundo em uma pororoca que parece tudo levar em seu caminho, a literatura (e o que em torno dela existe de busca identitária individual e coletiva) grita sua relevância.


Pensando novamente nos EUA que nos brindaram com o veneno Donald Trump, mas também com os bálsamos Melville e Poe... É preciso olhar para o que chamamos agora de literatura norte-americana (e seus primórdios) tendo em mente a noção de literatura tardia; como no Brasil ou como na Rússia, é apenas no século XIX para o XX que começamos a poder falar de uma literatura estadunidense de língua inglesa, reflexo cultural amadurecido de pouco em pouco ante a independência política do final do 1700s. Ao destacar como alguns de seus expoentes as figuras de Edgar Allan Poe e Herman Melville, Faedrich e Figueiredo aproximam os autores em parte pelo que de modernizador eles propuseram com suas obras: os séculos modernos são os séculos do olhar, são os séculos do ser humano visual, transformado cognitivamente e perceptivamente pelas transformações tecnológicas que já vinham plasmando nosso modo de viver desde antes da Revolução Industrial. No mundo eminentemente urbano agora, privilegiamos mais do que tudo o visual, o imagético, o descortinável. Poe, diz Faedrich, é “reconhecido por ser o pai da literatura policial, [com uma obra na qual] a questão do olhar é fundamental (...), nesse sentido se aproxim[ando] de Melville e seu capitão Ahab, cuja obsessão o impede de ver” (FAEDRICH et al, 2016,, p. 254). Embora menos canônico que Melville, que inscreveu algumas de suas prosas, como Moby Dick, entre as obras máximas do romance ocidental de todos os tempos, Poe tornou-se ainda assim uma figura fundamental para a literatura norte-americana, mas também a (contemporânea) mundial pelo seu profundo e profícuo diálogo com a cidade, com a urbe que se impunha como o novo locus humano por excelência. Ao fundar (pra valer) a literatura policial com os contos de seu Monsieur Dupin e ao penetrar na psicologia dos flâneurs e das massas em textos como “O homem na multidão”, Poe aproxima-se da questão identitária (norte-americana, mas não só) tanto quanto Melville em sua busca marítima da verdade metaforizada em baleia branca.

Como todo grande livro, Moby Dick comporta diversos níveis de leitura, entre eles o aventuresco, o que justifica sua escolha para inúmeras adaptações infantojuvenis desde seu lançamento. Sua fruição plena é um grande mergulho nos arrebatamentos de que a alma humana é capaz: ira, vingança, obsessão, destino, comprometimento. Ahab, o icônico capitão a quem a baleia devorou uma perna, é tão incapaz de se comportar de outro maneira como Bartleby é de se conformar com tarefas que “preferiria não fazer” (como diz inúmeras vezes ao longo da noveleta que leva seu nome). Ahab não consegue se desviar de seu destino, como Bartleby não consegue atender às demandas da sociedade que dele solicita ao menos alguma explicação; corações em enigma, indecifráveis até mesmo para Dupin ou Sherlock Holmes – e por isso tão atuais, tão clássicos, tão instigantes e ainda tão cheios de voz para nos falar.    

Somos todos pequenos barcos no oceano infinito, ou irrelevantes (porque imediatamente substituíveis) Bartlebys em anônimos escritórios, todos homens modernos na imparável multidão de Poe “tenta[ndo] se compreender, buscando o seu lugar na sociedade” (FAEDRICH et al, p. 268). A semelhança das figuras todas citadas (de Melville, de Poe), reunidas em torno desse vaguear humano, lembra mesmo o flâneur de Charles Baudelaire, “o detetive da cidade, percorrendo a cidade das transformações urbanas que ocorrem no século XIX” (FAEDRICH et al, p. 269) em busca tanto do anonimato e da segurança das multidões quanto da identidade que (qual mítica baleia branca) sonha lá encontrar.

Em seu livro A alma encantadora das ruas, no texto que abre o volume, João do Rio discorre apaixonadamente sobre a rua, sobre como ela molda o homem moderno, como diz de seu caráter e vida e coração. Para João do Rio, flanar é (des)ocupação artística obrigatória, sem a qual é impossível conhecer de verdade um povo, uma cidade. Mas o homem precisa tornar-se relevante para o mundo – seja por seu apreço por enigmas, seja por sua resistência bartlebyniana, seja por perseguir baleias brancas; ele precisa de uma identidade (como as literaturas). Como diz o escritor, “o homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua” (RIO, 1997, p. 74, grifo nosso), ao mundo, à sociedade, à vida. Afinal, seja ele um Moby Dick ou um Quixote, seja ele um caso de Dupin ou de um Holmes, “esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós” (RIO, 1997, p. 75) deve ser (Modernamente) único, idiossincrático, irrepetível – só então... só então... Humano.

Que neste domingo, dia 15 de novembro, este país de maricas vá às ruas, encantado-encantador, e recomece nas urnas a resgatar sua própria alma (plantando algo ainda maior para 2022), como fizeram há pouco os norte-americanos; como já escreviam e inspiravam, por seu talento e beleza, não Trump (ou seus fãs patetas locais), mas Melville e Poe.



REFERÊNCIAS

FAEDRICH, Anna; FIGUEIREDO, Eurídice. Literatura Comparada: volume único. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.