sábado, 7 de agosto de 2021

Convalescendo da própria vida

 


Jogando a frase no Google, a plataforma me retorna zero resultados. Então me convenço: as palavras são mesmo minhas, anotadas mais de dez anos atrás em um bloco de fragmentos aleatórios, quando eu iniciava uma trajetória em busca de cura para uma vida profissional instável, pouco segura e que não iria mais perdoar as décadas de calendários que já eram mais de quatro.

Ao colocar meu selo musical Rock Symphony, a produtora toda, em fogo brando de pão-tornado-hobby, eu procurara outras oportunidades no mundo do trabalho, na área educacional, no retorno à academia. Sentia-me assim mesmo, "convalescendo da própria vida" (outro título para um futuro livro), vida de escolhas e caminhos que, qual planta crescida sem poda, se desenvolvera atabalhoadamente, causando danos e sofrimento, e precisava agora de aparos, de sacrifícios brutais para novamente verdejar e permitir sorrisos.

Em 2010, eu estava entre-casamentos, sofrendo, fazendo sofrer, tentando fazer de uma casa em construção um arremedo de lar, mas pela primeira vez fazia planos. Planos de verdade, como meu amigo holandês Will Plooster sempre martelara pra mim: metas, objetivos, alvos, caminhos de ação. De lá pra cá, não mais produtor musical ou vendedor de discos, passei por departamentos de desenho instrucional, consultorias educacionais e empregos corporativos, fiz uma pós em EAD, engatei um mestrado (que rendeu livro), depois um doutorado, ambos como alguém rendido à sua maior paixão: os livros e as arqueologias do papel.


 
Minha convalescença é de estágios programados: às pós-graduações, somei uma licenciatura em Letras, concluída em janeiro deste ano, com a qual pretendia conquistar vagas em concursos na Educação. Vinha fazendo provas desde 2018 e, para minha alegria, saiu hoje minha primeira nomeação - professor de Língua Portuguesa e Literaturas do município de Rio das Ostras, fruto do certame de dezembro de 2019. Na época, precisei piorar minha classificação para ter tempo de concluir a graduação e não ser convocado de imediato. Deu certo. 



Essa vitória, esse começo de recomeço, eu dedico especialmente (sem esquecer nenhum dos outros envolvidos, como minha esposa , meu pai e meus filhos...) à minha mãe Leila, cúmplice das dores dessa árdua travessia, que luta hoje contra dois males tão sérios quanto uma vida em desgoverno como a minha: um Parkinson debilitante e uma depressão desesperadora e atroz. Se para o primeiro não há cura, mas tratamento e acomodação, para o segundo - tratável, vencível - eu desejo uma convalescença como a minha (porque os demônios da minha mãe são igualmente e tão somente seus).

É preciso convalescer das próprias escolhas, às vezes, mãe; mesmo quando estas tenham sido gestos de amor. Bons e novos dias para nós! E, colegas, me aguardem, porque sou eu mesmo que agora chego, inacabado, socrático e freireano, mera semente em formação, querendo, como escreveu Leila em 1976, "ser mais Leonardo": docemente professor.


terça-feira, 1 de junho de 2021

Foie Gras

As fezes dos pombos ainda me incomodam um pouco, não consigo deixar de pisar e fazer carimbos com elas por onde ando, no terraço do prédio na Rua da Conceição. Preferia a praça, no Rink, mas a todo momento era obrigado a dar explicações sobre as gaiolas com os pombos e o porquê de quando em quando soltar um deles para o ar, num movimento meio bandido.

Daqui do alto, o ruído da cidade, calado pelos metros que nos separam, me ensopa menos a alma. E eu posso me concentrar. E pensar no que há de louco no mundo, e nas vagas de desigualdade que não encontram eco algum nas pessoas.



Abro a gaiola, os pássaros mais agitados que de costume, agarro um dos novos – sempre agressivo, esse aqui, seu bico me prova o sangue – e empurro goela adentro, papo adentro, mensagem adentro, os  grãos de veneno de ação rápida.

Meus dedos relaxam, a outra mão fecha as portas da gaiola para que haja um novo dia amanhã, e meu mensageiro voa. O pombo voa, morre aos poucos, alguns minutos, ou muitos, qual bucha de balão caprichosa ao escolher seu lugar de pousar.

Em alguma rua, meu rato-de-asas vai desabar, vomitando, assustando alguém, mostrando à cidade o denominador comum mais cru e direto do que temos de igualdade.

Vejo o flanar das asas, menor, menor, menor, subir, sumir, desço as escadas em busca das ruas, para voltar amanhã e semear lembretes, semear a morte pela cidade que nada ouve, nada vê. 


Leonardo Nahoum, 19 de março de 2010. 


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Onze anos atrás, quando havia recém-começado a dar expediente como desenhista instrucional no CEDERJ (onde depois conquistei minha licenciatura EAD em Letras), fui fisgado por uma chamada para um concurso de microcontos da ABL. Estava entre casamentos, revivendo alguns hábitos adormecidos (como o de me sentir escritor), e logo sentei para produzir algum texto que me permitisse concorrer. Mal terminei a primeira versão, decidido a reduzir as 250 e poucas palavras para o limite de 140 do edital, descobri que eram na verdade... 140 caracteres. Um tweet. Por isso, o texto agora não mais inédito ficou assim, desse tamanho mesmo. (escrevi um conto-tweet pra concorrer, chamado A4, mas ele fica para outra postagem futura). 

O plano é que Foie Gras (gosto dele, já viram...) faça parte, no futuro, de um volume de narrativas curtas chamado Amores intestinos. Para os colegas professores, o título (e o texto) podem servir bastante bem, penso, para uma aula sobre Intertextualidade. 


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Aula de Metalurgia

Agora, fica olhando pra ver se não vem ninguém.

Paulinho era um ano mais velho que eu, mas estudamos na mesma sala até ele perder de ano e ter que mudar de escola para uma que aceitasse alunos em "dependência". Mesmo assim, nos víamos sempre perto da casa dele, em Icaraí, percorrendo as ruas em nossas rotinas de pequenos infratores urbanos: agachados junto às rodas pretas dos carros, procurávamos o ponto certo para enfiar a chave de fenda que faria soltar os pequenos pesos de chumbo do balanceamento; matéria-prima para ser derretida na cozinha do apartamento de classe média na beira da praia, nossas primeiras aventuras pelo mundo da metalurgia, dos moldes de durepoxi e das fichas falsas de fliperama.



- Conseguiu? - perguntei quase num sussurro, o pescoço jogando os olhos ora para a esquerda, ora para a direita, tentando adivinhar em alguma das pessoas que passavam o perigo-mor de um dono de carro ou um adulto indignado com as nossas molecagens.

- Tá quase, tá quase... Presta atenção aí. 

A fita adesiva com as bolotas de chumbo de soltou, finalmente, e não perdemos mais um segundo abaixados. Ganhamos a rua, transformando a adrenalina em velocidade, parceiros que éramos de um crime que parecia nos fazer quase a mesma pessoa de onze anos, a mesma sombra de braços e pernas misturadas que corria e trançava risadas e pequenos comentários: agora, entrar no prédio, derreter o chumbo, derramar com cuidado no molde, deixar esfriar, soltar a ficha, repetir até acabar o chumbo.



A tarde parecia encomendar chuva, o céu escurecia os prédios da cidade onde, talvez em outros dias, houvessem passado outras parelhas de amigos perfeitos como nós: potros falantes em um carrossel que o tempo não apaga, quando muito enferruja e espaça os galopes.

Mas não íamos mais a parques; nossas horas vagabundas agora eram com esses caça-níqueis modernos, de telas coloridas e bolas cromadas enlouquecidas, uma barafunda sonora e visual no meio da qual trocávamos olhares ternos, sem saber que eram ternos, adivinhando, sem realmente entender, que aquelas tardes de melhores amigos coroariam nossa infância. Pequenos furtos, fichas de flíper falsas e tudo.


Rio de Janeiro, 15 de maio de 2014. 

(para Marcelo 'Konga' Xavier, o "Paulinho", e para todos os amigos que não se afastam nunca - são apenas a distância dos galopes espaçados)

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Escrevi esse pequeno conto-crônica como exercício para uma das aulas da Oficina de Literatura Infantil e Juvenil que fiz na PUC em 2014, oferecida pelas professoras Márcia Cristina Silva e Ana Letícia Leal. Como tenho aproveitado a pandemia para dar alguma organização a (literalmente) décadas de todo tipo de papel, o textinho apareceu e... achei que merecia o blog (ou o blog o merecia). Publicado está.