segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Aula de Metalurgia

Agora, fica olhando pra ver se não vem ninguém.

Paulinho era um ano mais velho que eu, mas estudamos na mesma sala até ele perder de ano e ter que mudar de escola para uma que aceitasse alunos em "dependência". Mesmo assim, nos víamos sempre perto da casa dele, em Icaraí, percorrendo as ruas em nossas rotinas de pequenos infratores urbanos: agachados junto às rodas pretas dos carros, procurávamos o ponto certo para enfiar a chave de fenda que faria soltar os pequenos pesos de chumbo do balanceamento; matéria-prima para ser derretida na cozinha do apartamento de classe média na beira da praia, nossas primeiras aventuras pelo mundo da metalurgia, dos moldes de durepoxi e das fichas falsas de fliperama.



- Conseguiu? - perguntei quase num sussurro, o pescoço jogando os olhos ora para a esquerda, ora para a direita, tentando adivinhar em alguma das pessoas que passavam o perigo-mor de um dono de carro ou um adulto indignado com as nossas molecagens.

- Tá quase, tá quase... Presta atenção aí. 

A fita adesiva com as bolotas de chumbo de soltou, finalmente, e não perdemos mais um segundo abaixados. Ganhamos a rua, transformando a adrenalina em velocidade, parceiros que éramos de um crime que parecia nos fazer quase a mesma pessoa de onze anos, a mesma sombra de braços e pernas misturadas que corria e trançava risadas e pequenos comentários: agora, entrar no prédio, derreter o chumbo, derramar com cuidado no molde, deixar esfriar, soltar a ficha, repetir até acabar o chumbo.



A tarde parecia encomendar chuva, o céu escurecia os prédios da cidade onde, talvez em outros dias, houvessem passado outras parelhas de amigos perfeitos como nós: potros falantes em um carrossel que o tempo não apaga, quando muito enferruja e espaça os galopes.

Mas não íamos mais a parques; nossas horas vagabundas agora eram com esses caça-níqueis modernos, de telas coloridas e bolas cromadas enlouquecidas, uma barafunda sonora e visual no meio da qual trocávamos olhares ternos, sem saber que eram ternos, adivinhando, sem realmente entender, que aquelas tardes de melhores amigos coroariam nossa infância. Pequenos furtos, fichas de flíper falsas e tudo.


Rio de Janeiro, 15 de maio de 2014. 

(para Marcelo 'Konga' Xavier, o "Paulinho", e para todos os amigos que não se afastam nunca - são apenas a distância dos galopes espaçados)

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Escrevi esse pequeno conto-crônica como exercício para uma das aulas da Oficina de Literatura Infantil e Juvenil que fiz na PUC em 2014, oferecida pelas professoras Márcia Cristina Silva e Ana Letícia Leal. Como tenho aproveitado a pandemia para dar alguma organização a (literalmente) décadas de todo tipo de papel, o textinho apareceu e... achei que merecia o blog (ou o blog o merecia). Publicado está.