sexta-feira, 16 de maio de 2025

"DISCLAIMER SENTIMENTAL" (ou "Rascunho trop honnête para um perfil de Tinder")



— Chega um pouco pro lado... agora ajeita as costas.

— Acha melhor mesmo gravar isso?

— Se colocar só o texto ninguém lê; perfil de app de encontro é imagem, meia dúzia de linhas e olhe lá; e foto. Foto, foto, foto. Desabotoa esse último botão que tá parecendo um enforcado.

— Esse...? Tá. Mas eu não tô confortável de gravar assim lendo... preferia só pendurar o texto no lugar que dissesse "descrição", no perfil, e pronto...

— Não tem espaço lá pra isso. (e nem ninguém quer saber ou vai ler, caralho) Mas um link de vídeo de repente funciona; sempre tem uma maluca que curte excentricidade. Ou maluco, não sei qual é a tua.

— Maluca; quer dizer, mulher, só, mesmo.

— Beleza; tanto faz. Luz tá boa, fundo branco basicão... melhor aproveitar pra fazer logo, que tá entrando pouco barulho da rua.

— Tá...

— E menos cara de enterro, que ninguém se vende assim. Já falei que o texto tá uma merda; mas você que sabe.

— Então pode gravar [   ]


[   ] Sou professor novato (talvez por isso prefira sexto ano?), amigo de livros, filmes, séries, e de cães e de algumas poucas pessoas humanas. Já trabalhei por década e meia com música (porque nunca pude viver sem ela) e tenho dois filhos e uma filha, todos grandes e fonte de muito orgulho e com os quais aprendo todo dia. Leio muito pouca poesia e quase não vou a teatro – duas coisas que me propus a mudar, porque mudar com coragem é sempre bom. Péssimo dançarino, não deixaria, porém, meu par sem par... Também acampo, faço trilhas, sou mais Beatles (mato) que Rolling Stoles (praia), e gosto muito da espontaneidade que exercito para equilibrar minha necessidade de propósitos e mapinhas-de-cotidiano (quem não tem ilusões de controle sobre a própria vida?).

Já me disseram que se eu fosse bicho, seria um cachorro que lê. Não me peça para explicar, mas estou sempre com 6, 7, 8 livros em leitura; não é presepada nem nada, não. É só uma mistura de inquietude de interesses (intelectuais) e uma vontade de abraçar muitos começos.

Escrevo (ensaios, artigos, vezenquando ficção), ainda insisto em lançar CDs pelo meu selo de rock progressivo, e, para minha surpresa, tenho sido muito feliz na Educação. Sou virginiano – do tipo organizado, apenas dos 40 anos pra frente – antes, era o caos em pessoa; hoje, sou o cara da obrigatória agenda de papel (já soube que isso não é sexy; paciência...).

Gosto de cozinhar e de garimpar artesanatos por onde serpenteio e de viajar com pouca ou nenhuma companhia. Tenho procurado me tornar não uma pessoa importante, mas necessária (e essa aprendi com Nego Bispo, e com quem a ele me apresentou); e preservar espaços para os anacolutos da vida, que eles são mais comuns do que na linguagem.

Não dou conta de muita vida digital; é um pouco geracional, penso, mas nunca achei que havia tempo suficiente para gerir presença em tantos universos (Facebook, Twitter, Instagram, etc.) além do comezinho mundo físico dos empregos, filhos, contas, amores e casamentos. Tento, contudo, ceder, porque não sou assim tão ranzinza nesse quesito de me atualizar.

Ah! não tenho time de futebol (meus alunos acham isso o cúmulo), mas adoro acompanhar Copa do Mundo. Fui casado três vezes (as duas últimas com a mesma moça e mulher); sou um otimista e ainda acredito no amor. E por isso preciso desamar (“And do I really have a hand in my forgetting?”).

Aqui, portanto, meu projeto e apresentação; e minha disposição cheia de riscos e perigosa – nem tanto para amizades novas, companhias divertidas e para volteios casuais-esclarecidos-consensuais, mas para quem se pegue (de surpresa) pelo meu temperamento setembrino se infatuando. (porque não sei – ainda – se [já] consigo desamar) [   ]


[   ] — Foi... Quer que aplique um filtro, alguma coisa? Sua cara seca não tá ajudando, não.

— Não; filtro nenhum, não. Ficou mais ou menos, pelo menos?

— Ficou a merda que só podia ficar, né. Vou mandar o vídeo por e-mail e WhatsApp. Agora, deixeu correr aqui pra guardar as coisas que tenho filmagem em Campo Grande e tá vindo chuva por aí, pra terminar de foder o meu dia [   ]

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

[CARTA (de desvelo?) DO TRECHO INICIAL DE “Antes, o verão”, DE CONY – 1964; das melhores coisas que ele jamais escreveu]

Agora, escrevo especialmente para você. Ninguém saberá que é para você que estou escrevendo, e você mesma só sentirá isso depois de muitos, muitos dias, quando a dor e o tempo pousarem sobre seus olhos e tornarem sua carne mais neutra que a nuvem e mais breve que a espuma. Hoje, escrevo especialmente para você, retomando um diálogo que bruscamente interrompêramos sem saber o que íamos fazer com as palavras que não chegamos a dizer, sem termos tempo de apagar as palavras que foram ditas e — infelizmente — guardadas e protegidas pelo nosso repentino ódio. Isso poderia ser o início ou o fim de um romance — e o é realmente, início e fim ao mesmo tempo. Afinal, terminamos o nosso prazo, esgotamos a clemência que atiramos um ao outro como esmola ou paga — e amanhã fecharemos essas portas e janelas e nunca mais retornaremos, nunca mais repetiremos o rito de verões e invernos que juntos consumimos, apoiados em nossos medos e redimidos em nossas alucinações. (...)
Tudo deu errado — e já não há coragem nem necessidade de procurarmos a culpa ou o erro. Nem haverá tempo nem vontade para refazermos a nossa história com amor. E sem amor, de nada adiantará vivermos lado a lado, dia a dia, mágoa a mágoa. O verão acabou. Estávamos juntos por acaso quando o vento começou a soprar e levantar a areia. O céu já se preparava para a noite — e os pescadores que recolhiam as redes diziam sem palavras e sem gestos que o verão acabara. Já estávamos prontos para isso — e mais uma vez fomos perfeitos, estava tudo arrumado, a caminhonete abastecida e pronta para a viagem de amanhã e de volta, as roupas emaladas, os empregados pagos, o jardim preparado para o outono que agora se prolongará para todo o sempre. (...)
Nossos filhos estão na cidade, voltarão para o jantar e será o último jantar em que sentaremos os quatro, nós dois e eles. Seremos fortes, e nada em nossos gestos revelará que aquilo será um último jantar, um último momento. Eles ainda não sabem de nada, e acreditarão que em verão igual aqui estaremos para receber novas areias e novos ventos. Tudo acabará daqui a pouco e a lucidez que gozamos agora talvez seja o último silêncio que compreenderemos juntos, com a mesma e igual intensidade. (...)
Fomos perfeitos — digamos mais uma vez — neste verão que se acaba. Combináramos mais umas férias assim, nossos filhos viriam do colégio, esperaram o ano todo pelo verão, seria cruel negar-lhes isso — e fizemos o sacrifício juntos e juntos estivemos esses meses, como se tudo fosse outra vez durar para sempre, o verão e seus ventos, o mar e suas areias. Seu sal. Tudo passou depressa, parece que foi ontem que aqui chegamos e abrimos essas janelas que agora fecharemos e que tão cedo não se abrirão — e serão mãos estranhas que abrirão essas janelas para outros rostos receberem outros ventos. (...)
Vimos, juntos, os pescadores recolherem as redes, e, por um instante, tivemos vontade de avisar um ao outro: “Acabou.” Mas não foi preciso. Como as redes dos pescadores, em silêncio nos guardamos e voltamos para casa sem olhar os espantos e as tréguas que não poderemos dar mais um ao outro. Você então foi para a varanda, esperar pelos nossos filhos, que logo chegarão. Eu restei só. Só, como sempre procurei estar esses últimos dias. Breve virá o jantar e depois iremos cada qual para seu lado. Não sei o sonho que visitará seus olhos. Eu velarei. Gastarei esta última noite horrivelmente lúcido, esbarrando em meus próprios escombros, flagelado pelos meus próprios fantasmas. Se eu gritar mais forte — não há o que temer: é que os fantasmas ou os escombros feriram mais fundo, e irreparavelmente. (...)
É certo, a vida logo se recomporá. Com mais ou menos sorte, continuaremos íntegros — e isso é o que importa. Talvez sejamos melhores que agora, mais plácidos, ou mais conformados. Isso não conta, por ora. Conta é que estamos juntos pela última vez — e pela última vez ainda teremos a esperança de que o amanhã será a eternidade indolor com que a solidão — lá fora — nos espera com a saudade comum, e, quem sabe?, com o comum perdão.


sábado, 8 de janeiro de 2022

A doçura da docência

 Uma gripe aterrissada em pleno almoço de Natal me colocou de molho por um bom par de semanas, servindo para me lembrar de que os melhores planos não resistem ao ataque fortuito do imponderável. 

Estava devendo um relato dos meus primeiros dias, semanas, meses, como professor, mas a vida se ocupou de mim e os registros (como as fotos que esquecemos de tirar quando as resenhas e festas são realmente boas) foram ficando adiados. Dias de chuva vão se enfileirando, enquanto acrescento à gripe a recuperação de uma pequena cirurgia - decido escrever.

São Pedro da Aldeia, onde servi com contrato temporário entre 6 de agosto e 16 de dezembro de 2021, foi minha cidade de batismo como docente - lá experimentei minhas primeiras realidades escolares e administrativas, algumas friezas de colegas que não quiseram se dar ao trabalho de travar contato com o "temporário", e a doçura do trabalho de mestre de crianças e jovens. Em São Pedro, abrindo a alma para alunos felizes por estarem tendo naquele ano, pela primeira vez, um professor de língua portuguesa, dividi a aflição de estar começando uma carreira nova: "Não comecei a trabalhar hoje, como vocês podem imaginar pela minha careca e pelos persistentes cabelos brancos - mas sou novo nisso, estou aprendendo a ser professor".

Não sou particularmente babão (embora tenha lá meus gatilhos pavlovianos), mas uma década de trabalho corporativo insatisfatório se derreteu quando percebi o brilho feliz de reconhecimento nos olhos de alguns de meus alunos em minha segunda aula. Não há paga para esse tipo de felicidade. Ou para a emoção de ver o próprio nome preenchido pela primeira vez no campo "Professor:".




Em Rio das Ostras, onde sou efetivo, escolhi uma escola-casa (chama-se Padre José Dilson Dórea) que parece ser um ímã de almas boas. A eles, que me acolheram desde o primeiro minuto como colega-calouro um tanto retardatário na carreira de ensinar, narrei todos os dias os meus encantamentos com o carinho que começava a colher em São Pedro, com meus aluninhos de 7º, 8º e 9º anos. Alguns já me assaltavam com perguntas sobre o ano seguinte, se poderia eu ser seu professor em 2022; outros brincavam com meu nome no quadro, juntando a ele o vermelho amoroso do coração; uma aluna de sétimo ano, em uma aula de Produção Textual que eu sequer começara (haviam se passado apenas 3 minutos, nos quais eu estava colocando minhas coisas sobre a mesa, cumprimentando os alunos e puxando algum assunto de gente-para-gente), saiu-se com uma frontal exaltação sobre a minha "aula muito boa", ao que retruquei: "Mas como assim...? Eu, bom professor? Mas nem fizemos nada ainda?"



- Professor, já dá pra ver que a sua aula é boa. O que mais tem é professor que entra na sala, vira pro quadro, fica escrevendo um monte, nem olha pra gente; depois, senta na mesa e manda a gente copiar, fazer dever. Nem quer saber de nada da gente.

Ontem, falando com minha irmã que mora em Toronto, disse a ela que sei bem dos meus limites; sou um péssimo professor de português ainda. Minha didática é incipiente, ainda não domino meu espaço, ou meu tempo, não sei com segurança que textos usar, quais as melhores abordagens ou exercícios. Sei que tenho muito a melhorar e mora em mim um desejo sincero de fazer isso. Como falei a meus alunos em todas as primeiras aulas que dei, meu propósito é esse: aprender a ser um professor melhor.

Mas, se sou tão cru como profissional de língua portuguesa, acho que posso dizer que não entro em campo igualmente verde como educador. Meus alunos, em especial os de São Pedro da Aldeia, com quem as trocas em sala foram mais intensas (o retorno presencial em Rio das Ostras não foi o esperado), me fizeram crer assim. Em turmas diferentes, ao final do último encontro, recebi elogios espontâneos e mesmo abraços. Dividi bolos e refrigerantes e bombons. E votos de felicidade pela vida que se estendia para além daquelas salas e convívio. Esses 5 meses de estreia docente em 2021 me mostraram o quanto da docência bem sucedida reside na doçura de humanidade que levamos (ou não) para frente daqueles que são humanos como nós - não números, não estatísticas, não nomes num diário.

Sentirei saudades dos meus primeiros alunos de São Pedro da Aldeia, com os quais troquei gestos de amor verdadeiramente freireano. Espero conseguir acompanhar alguns de seus voos por aí, com a ajuda das redes sociais. 

E antevejo com satisfação e orgulho os próximos meses e anos de convívio com a comunidade escolar da qual passei a fazer parte e com a qual quero contribuir com toda a minha imperfeição curiosa: Fernanda, Gabi, Eva, Carol, Rodrigo, Hugo, Thiago, Gabriela, Luciana, Pedro, Marcos César, Vinicius, Alex, Ana, Isa, Juvenal, Teo, Layon, Lourdes, Felipe, Fábios (são três!), Patricia, Orbela, Roberto, Marcão, Jefferson, Cristiano, Bia... Que bom ter me juntado a vocês, que bom ter plantado tantas sementes de amizade assim, aos 51 anos.

Ninguém solta a mão de ninguém... E ninguém deixa o Padre. :-)







sábado, 7 de agosto de 2021

Convalescendo da própria vida

 


Jogando a frase no Google, a plataforma me retorna zero resultados. Então me convenço: as palavras são mesmo minhas, anotadas mais de dez anos atrás em um bloco de fragmentos aleatórios, quando eu iniciava uma trajetória em busca de cura para uma vida profissional instável, pouco segura e que não iria mais perdoar as décadas de calendários que já eram mais de quatro.

Ao colocar meu selo musical Rock Symphony, a produtora toda, em fogo brando de pão-tornado-hobby, eu procurara outras oportunidades no mundo do trabalho, na área educacional, no retorno à academia. Sentia-me assim mesmo, "convalescendo da própria vida" (outro título para um futuro livro), vida de escolhas e caminhos que, qual planta crescida sem poda, se desenvolvera atabalhoadamente, causando danos e sofrimento, e precisava agora de aparos, de sacrifícios brutais para novamente verdejar e permitir sorrisos.

Em 2010, eu estava entre-casamentos, sofrendo, fazendo sofrer, tentando fazer de uma casa em construção um arremedo de lar, mas pela primeira vez fazia planos. Planos de verdade, como meu amigo holandês Will Plooster sempre martelara pra mim: metas, objetivos, alvos, caminhos de ação. De lá pra cá, não mais produtor musical ou vendedor de discos, passei por departamentos de desenho instrucional, consultorias educacionais e empregos corporativos, fiz uma pós em EAD, engatei um mestrado (que rendeu livro), depois um doutorado, ambos como alguém rendido à sua maior paixão: os livros e as arqueologias do papel.


 
Minha convalescença é de estágios programados: às pós-graduações, somei uma licenciatura em Letras, concluída em janeiro deste ano, com a qual pretendia conquistar vagas em concursos na Educação. Vinha fazendo provas desde 2018 e, para minha alegria, saiu hoje minha primeira nomeação - professor de Língua Portuguesa e Literaturas do município de Rio das Ostras, fruto do certame de dezembro de 2019. Na época, precisei piorar minha classificação para ter tempo de concluir a graduação e não ser convocado de imediato. Deu certo. 



Essa vitória, esse começo de recomeço, eu dedico especialmente (sem esquecer nenhum dos outros envolvidos, como minha esposa , meu pai e meus filhos...) à minha mãe Leila, cúmplice das dores dessa árdua travessia, que luta hoje contra dois males tão sérios quanto uma vida em desgoverno como a minha: um Parkinson debilitante e uma depressão desesperadora e atroz. Se para o primeiro não há cura, mas tratamento e acomodação, para o segundo - tratável, vencível - eu desejo uma convalescença como a minha (porque os demônios da minha mãe são igualmente e tão somente seus).

É preciso convalescer das próprias escolhas, às vezes, mãe; mesmo quando estas tenham sido gestos de amor. Bons e novos dias para nós! E, colegas, me aguardem, porque sou eu mesmo que agora chego, inacabado, socrático e freireano, mera semente em formação, querendo, como escreveu Leila em 1976, "ser mais Leonardo": docemente professor.


terça-feira, 1 de junho de 2021

Foie Gras

As fezes dos pombos ainda me incomodam um pouco, não consigo deixar de pisar e fazer carimbos com elas por onde ando, no terraço do prédio na Rua da Conceição. Preferia a praça, no Rink, mas a todo momento era obrigado a dar explicações sobre as gaiolas com os pombos e o porquê de quando em quando soltar um deles para o ar, num movimento meio bandido.

Daqui do alto, o ruído da cidade, calado pelos metros que nos separam, me ensopa menos a alma. E eu posso me concentrar. E pensar no que há de louco no mundo, e nas vagas de desigualdade que não encontram eco algum nas pessoas.



Abro a gaiola, os pássaros mais agitados que de costume, agarro um dos novos – sempre agressivo, esse aqui, seu bico me prova o sangue – e empurro goela adentro, papo adentro, mensagem adentro, os  grãos de veneno de ação rápida.

Meus dedos relaxam, a outra mão fecha as portas da gaiola para que haja um novo dia amanhã, e meu mensageiro voa. O pombo voa, morre aos poucos, alguns minutos, ou muitos, qual bucha de balão caprichosa ao escolher seu lugar de pousar.

Em alguma rua, meu rato-de-asas vai desabar, vomitando, assustando alguém, mostrando à cidade o denominador comum mais cru e direto do que temos de igualdade.

Vejo o flanar das asas, menor, menor, menor, subir, sumir, desço as escadas em busca das ruas, para voltar amanhã e semear lembretes, semear a morte pela cidade que nada ouve, nada vê. 


Leonardo Nahoum, 19 de março de 2010. 


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Onze anos atrás, quando havia recém-começado a dar expediente como desenhista instrucional no CEDERJ (onde depois conquistei minha licenciatura EAD em Letras), fui fisgado por uma chamada para um concurso de microcontos da ABL. Estava entre casamentos, revivendo alguns hábitos adormecidos (como o de me sentir escritor), e logo sentei para produzir algum texto que me permitisse concorrer. Mal terminei a primeira versão, decidido a reduzir as 250 e poucas palavras para o limite de 140 do edital, descobri que eram na verdade... 140 caracteres. Um tweet. Por isso, o texto agora não mais inédito ficou assim, desse tamanho mesmo. (escrevi um conto-tweet pra concorrer, chamado A4, mas ele fica para outra postagem futura). 

O plano é que Foie Gras (gosto dele, já viram...) faça parte, no futuro, de um volume de narrativas curtas chamado Amores intestinos. Para os colegas professores, o título (e o texto) podem servir bastante bem, penso, para uma aula sobre Intertextualidade. 


segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Aula de Metalurgia

Agora, fica olhando pra ver se não vem ninguém.

Paulinho era um ano mais velho que eu, mas estudamos na mesma sala até ele perder de ano e ter que mudar de escola para uma que aceitasse alunos em "dependência". Mesmo assim, nos víamos sempre perto da casa dele, em Icaraí, percorrendo as ruas em nossas rotinas de pequenos infratores urbanos: agachados junto às rodas pretas dos carros, procurávamos o ponto certo para enfiar a chave de fenda que faria soltar os pequenos pesos de chumbo do balanceamento; matéria-prima para ser derretida na cozinha do apartamento de classe média na beira da praia, nossas primeiras aventuras pelo mundo da metalurgia, dos moldes de durepoxi e das fichas falsas de fliperama.



- Conseguiu? - perguntei quase num sussurro, o pescoço jogando os olhos ora para a esquerda, ora para a direita, tentando adivinhar em alguma das pessoas que passavam o perigo-mor de um dono de carro ou um adulto indignado com as nossas molecagens.

- Tá quase, tá quase... Presta atenção aí. 

A fita adesiva com as bolotas de chumbo de soltou, finalmente, e não perdemos mais um segundo abaixados. Ganhamos a rua, transformando a adrenalina em velocidade, parceiros que éramos de um crime que parecia nos fazer quase a mesma pessoa de onze anos, a mesma sombra de braços e pernas misturadas que corria e trançava risadas e pequenos comentários: agora, entrar no prédio, derreter o chumbo, derramar com cuidado no molde, deixar esfriar, soltar a ficha, repetir até acabar o chumbo.



A tarde parecia encomendar chuva, o céu escurecia os prédios da cidade onde, talvez em outros dias, houvessem passado outras parelhas de amigos perfeitos como nós: potros falantes em um carrossel que o tempo não apaga, quando muito enferruja e espaça os galopes.

Mas não íamos mais a parques; nossas horas vagabundas agora eram com esses caça-níqueis modernos, de telas coloridas e bolas cromadas enlouquecidas, uma barafunda sonora e visual no meio da qual trocávamos olhares ternos, sem saber que eram ternos, adivinhando, sem realmente entender, que aquelas tardes de melhores amigos coroariam nossa infância. Pequenos furtos, fichas de flíper falsas e tudo.


Rio de Janeiro, 15 de maio de 2014. 

(para Marcelo 'Konga' Xavier, o "Paulinho", e para todos os amigos que não se afastam nunca - são apenas a distância dos galopes espaçados)

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Escrevi esse pequeno conto-crônica como exercício para uma das aulas da Oficina de Literatura Infantil e Juvenil que fiz na PUC em 2014, oferecida pelas professoras Márcia Cristina Silva e Ana Letícia Leal. Como tenho aproveitado a pandemia para dar alguma organização a (literalmente) décadas de todo tipo de papel, o textinho apareceu e... achei que merecia o blog (ou o blog o merecia). Publicado está.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Melville, Poe, Soveral: buscando a própria identidade na multidão (em um mundo de maricas)

Faz alguns meses, consegui lançar mais um livro inédito de Hélio do Soveral (A fonte da felicidade), que descobri durante a longa pesquisa de doutorado. Dentre outros projetos que me movem, ultimamente, e que têm me ajudado a equilibrar humor e sanidade em meio a isolamento, crises domésticas, meia idade (fiz 50 em setembro...) e persistente desemprego, está a organização de um volume com a poesia de Edgar Allan Poe traduzida e comentada por Soveral ao longo de toda sua vida. Já recrutei para o barco Dagomir Marquezi, para a orelha; Rubens F. Lucchetti, para o prefácio; e Alexander Meireles da Silva (UFG), para a apresentação.





Poe foi o grande expoente e modelo literário para Soveral; era o seu herói. Ele segue despertando paixões e vive um momento de renovada popularidade, por conta principalmente de seu papel no delineamento da chamada ficção detetivesca, no despertar ocidental para o lugar da cidade em nosso imaginário e ainda para o próprio erguer-se da literatura de seu país natal. Tenho muito de Poe ainda para descobrir e ler, e trabalhar nesse livro sobre sua poesia será um crescimento para mim interessante. Melville é outro de que gosto bastante, e a quem preciso retornar. Nos meus vinte anos, li com prazer e vagar uma edição de Moby Dick da Francisco Alves (penso em voltar ao livro agora releendo-o na versão da Cosac Naify). Nesse último semestre de faculdade de Letras, pude comparar os dois autores em muito boas páginas da disciplina de Literatura Comparada, tocada exemplar e apaixonadamente pela professora Anna Faedrich (UFF) e pela tutora Claudine Varela.



Antes de continuar, cabe dizer que mais do que nunca a literatura é necessária. Bernardo Carvalho recentemente escreveu sobre isso, atacando as medievalidades do governo Bolsonaro e frisando que, longe de secundária/os, a arte, os livros, o literário, se impõe/m como força humanizadora em meio a torrentes de pura destruição. Dias depois da declaração do presidente eleito brasileiro, de que o país deveria deixar de ser formado por "maricas" e enfrentar (???) o coronavírus, circulou pelas redes um vídeo curto, do carnavalesco Milton Cunha, colocando em palavras toda a devida indignação necessária ante tamanha estupidez. Recomendo fortemente que o assistam.

Enquanto repiques da pandemia se chocam com dizeres brasileiros abomináveis e com o estremecimento Trumpiano da democracia mais poderosa do mundo em uma pororoca que parece tudo levar em seu caminho, a literatura (e o que em torno dela existe de busca identitária individual e coletiva) grita sua relevância.


Pensando novamente nos EUA que nos brindaram com o veneno Donald Trump, mas também com os bálsamos Melville e Poe... É preciso olhar para o que chamamos agora de literatura norte-americana (e seus primórdios) tendo em mente a noção de literatura tardia; como no Brasil ou como na Rússia, é apenas no século XIX para o XX que começamos a poder falar de uma literatura estadunidense de língua inglesa, reflexo cultural amadurecido de pouco em pouco ante a independência política do final do 1700s. Ao destacar como alguns de seus expoentes as figuras de Edgar Allan Poe e Herman Melville, Faedrich e Figueiredo aproximam os autores em parte pelo que de modernizador eles propuseram com suas obras: os séculos modernos são os séculos do olhar, são os séculos do ser humano visual, transformado cognitivamente e perceptivamente pelas transformações tecnológicas que já vinham plasmando nosso modo de viver desde antes da Revolução Industrial. No mundo eminentemente urbano agora, privilegiamos mais do que tudo o visual, o imagético, o descortinável. Poe, diz Faedrich, é “reconhecido por ser o pai da literatura policial, [com uma obra na qual] a questão do olhar é fundamental (...), nesse sentido se aproxim[ando] de Melville e seu capitão Ahab, cuja obsessão o impede de ver” (FAEDRICH et al, 2016,, p. 254). Embora menos canônico que Melville, que inscreveu algumas de suas prosas, como Moby Dick, entre as obras máximas do romance ocidental de todos os tempos, Poe tornou-se ainda assim uma figura fundamental para a literatura norte-americana, mas também a (contemporânea) mundial pelo seu profundo e profícuo diálogo com a cidade, com a urbe que se impunha como o novo locus humano por excelência. Ao fundar (pra valer) a literatura policial com os contos de seu Monsieur Dupin e ao penetrar na psicologia dos flâneurs e das massas em textos como “O homem na multidão”, Poe aproxima-se da questão identitária (norte-americana, mas não só) tanto quanto Melville em sua busca marítima da verdade metaforizada em baleia branca.

Como todo grande livro, Moby Dick comporta diversos níveis de leitura, entre eles o aventuresco, o que justifica sua escolha para inúmeras adaptações infantojuvenis desde seu lançamento. Sua fruição plena é um grande mergulho nos arrebatamentos de que a alma humana é capaz: ira, vingança, obsessão, destino, comprometimento. Ahab, o icônico capitão a quem a baleia devorou uma perna, é tão incapaz de se comportar de outro maneira como Bartleby é de se conformar com tarefas que “preferiria não fazer” (como diz inúmeras vezes ao longo da noveleta que leva seu nome). Ahab não consegue se desviar de seu destino, como Bartleby não consegue atender às demandas da sociedade que dele solicita ao menos alguma explicação; corações em enigma, indecifráveis até mesmo para Dupin ou Sherlock Holmes – e por isso tão atuais, tão clássicos, tão instigantes e ainda tão cheios de voz para nos falar.    

Somos todos pequenos barcos no oceano infinito, ou irrelevantes (porque imediatamente substituíveis) Bartlebys em anônimos escritórios, todos homens modernos na imparável multidão de Poe “tenta[ndo] se compreender, buscando o seu lugar na sociedade” (FAEDRICH et al, p. 268). A semelhança das figuras todas citadas (de Melville, de Poe), reunidas em torno desse vaguear humano, lembra mesmo o flâneur de Charles Baudelaire, “o detetive da cidade, percorrendo a cidade das transformações urbanas que ocorrem no século XIX” (FAEDRICH et al, p. 269) em busca tanto do anonimato e da segurança das multidões quanto da identidade que (qual mítica baleia branca) sonha lá encontrar.

Em seu livro A alma encantadora das ruas, no texto que abre o volume, João do Rio discorre apaixonadamente sobre a rua, sobre como ela molda o homem moderno, como diz de seu caráter e vida e coração. Para João do Rio, flanar é (des)ocupação artística obrigatória, sem a qual é impossível conhecer de verdade um povo, uma cidade. Mas o homem precisa tornar-se relevante para o mundo – seja por seu apreço por enigmas, seja por sua resistência bartlebyniana, seja por perseguir baleias brancas; ele precisa de uma identidade (como as literaturas). Como diz o escritor, “o homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua” (RIO, 1997, p. 74, grifo nosso), ao mundo, à sociedade, à vida. Afinal, seja ele um Moby Dick ou um Quixote, seja ele um caso de Dupin ou de um Holmes, “esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós” (RIO, 1997, p. 75) deve ser (Modernamente) único, idiossincrático, irrepetível – só então... só então... Humano.

Que neste domingo, dia 15 de novembro, este país de maricas vá às ruas, encantado-encantador, e recomece nas urnas a resgatar sua própria alma (plantando algo ainda maior para 2022), como fizeram há pouco os norte-americanos; como já escreviam e inspiravam, por seu talento e beleza, não Trump (ou seus fãs patetas locais), mas Melville e Poe.



REFERÊNCIAS

FAEDRICH, Anna; FIGUEIREDO, Eurídice. Literatura Comparada: volume único. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.