quinta-feira, 10 de outubro de 2024

[CARTA (de desvelo?) DO TRECHO INICIAL DE “Antes, o verão”, DE CONY – 1964; das melhores coisas que ele jamais escreveu]

Agora, escrevo especialmente para você. Ninguém saberá que é para você que estou escrevendo, e você mesma só sentirá isso depois de muitos, muitos dias, quando a dor e o tempo pousarem sobre seus olhos e tornarem sua carne mais neutra que a nuvem e mais breve que a espuma. Hoje, escrevo especialmente para você, retomando um diálogo que bruscamente interrompêramos sem saber o que íamos fazer com as palavras que não chegamos a dizer, sem termos tempo de apagar as palavras que foram ditas e — infelizmente — guardadas e protegidas pelo nosso repentino ódio. Isso poderia ser o início ou o fim de um romance — e o é realmente, início e fim ao mesmo tempo. Afinal, terminamos o nosso prazo, esgotamos a clemência que atiramos um ao outro como esmola ou paga — e amanhã fecharemos essas portas e janelas e nunca mais retornaremos, nunca mais repetiremos o rito de verões e invernos que juntos consumimos, apoiados em nossos medos e redimidos em nossas alucinações. (...)
Tudo deu errado — e já não há coragem nem necessidade de procurarmos a culpa ou o erro. Nem haverá tempo nem vontade para refazermos a nossa história com amor. E sem amor, de nada adiantará vivermos lado a lado, dia a dia, mágoa a mágoa. O verão acabou. Estávamos juntos por acaso quando o vento começou a soprar e levantar a areia. O céu já se preparava para a noite — e os pescadores que recolhiam as redes diziam sem palavras e sem gestos que o verão acabara. Já estávamos prontos para isso — e mais uma vez fomos perfeitos, estava tudo arrumado, a caminhonete abastecida e pronta para a viagem de amanhã e de volta, as roupas emaladas, os empregados pagos, o jardim preparado para o outono que agora se prolongará para todo o sempre. (...)
Nossos filhos estão na cidade, voltarão para o jantar e será o último jantar em que sentaremos os quatro, nós dois e eles. Seremos fortes, e nada em nossos gestos revelará que aquilo será um último jantar, um último momento. Eles ainda não sabem de nada, e acreditarão que em verão igual aqui estaremos para receber novas areias e novos ventos. Tudo acabará daqui a pouco e a lucidez que gozamos agora talvez seja o último silêncio que compreenderemos juntos, com a mesma e igual intensidade. (...)
Fomos perfeitos — digamos mais uma vez — neste verão que se acaba. Combináramos mais umas férias assim, nossos filhos viriam do colégio, esperaram o ano todo pelo verão, seria cruel negar-lhes isso — e fizemos o sacrifício juntos e juntos estivemos esses meses, como se tudo fosse outra vez durar para sempre, o verão e seus ventos, o mar e suas areias. Seu sal. Tudo passou depressa, parece que foi ontem que aqui chegamos e abrimos essas janelas que agora fecharemos e que tão cedo não se abrirão — e serão mãos estranhas que abrirão essas janelas para outros rostos receberem outros ventos. (...)
Vimos, juntos, os pescadores recolherem as redes, e, por um instante, tivemos vontade de avisar um ao outro: “Acabou.” Mas não foi preciso. Como as redes dos pescadores, em silêncio nos guardamos e voltamos para casa sem olhar os espantos e as tréguas que não poderemos dar mais um ao outro. Você então foi para a varanda, esperar pelos nossos filhos, que logo chegarão. Eu restei só. Só, como sempre procurei estar esses últimos dias. Breve virá o jantar e depois iremos cada qual para seu lado. Não sei o sonho que visitará seus olhos. Eu velarei. Gastarei esta última noite horrivelmente lúcido, esbarrando em meus próprios escombros, flagelado pelos meus próprios fantasmas. Se eu gritar mais forte — não há o que temer: é que os fantasmas ou os escombros feriram mais fundo, e irreparavelmente. (...)
É certo, a vida logo se recomporá. Com mais ou menos sorte, continuaremos íntegros — e isso é o que importa. Talvez sejamos melhores que agora, mais plácidos, ou mais conformados. Isso não conta, por ora. Conta é que estamos juntos pela última vez — e pela última vez ainda teremos a esperança de que o amanhã será a eternidade indolor com que a solidão — lá fora — nos espera com a saudade comum, e, quem sabe?, com o comum perdão.


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