quinta-feira, 9 de abril de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 2)

O assunto "filhos" parece estar em alta. Seja porque estamos sendo obrigados a uma convivência familiar mais intensa com os pequenos (ou nem tão pequenos), seja porque as mortes pandêmicas extemporâneas nos fazem refletir mais sobre nossa própria existência fugaz - uma espécie de "Memento mori" que as GloboNews da vida e nossa conectividade 24x7 repetem incessantemente, com tom ora alarmista, ora pedagógico, ora necessário, ora apenas um pouco demais -, não são poucos os cronistas que têm visitado o tema nos últimos dias. Aliás, embora termo comum de dois gêneros, tenho apreciado bem mais AS cronistas que tenho lido nos últimos anos do que seus colegas de cromossomos mais variados: Tati Bernardi, em réplica a si mesma depois de meio que vomitar verdades sobre o duro (e nada róseo) viver-em-família, deu um belo depoimento sobre sua opção pela maternidade (ainda que em meio a muitas dúvidas), no texto "Tenha filho"; já Mariliz Pereira Jorge, às voltas com suas próprias angústias pessoais e a coragem que diz não servir sempre pra tudo, pondera em "O que fiz da minha vida?" se ter escolhido não ser mãe foi mesmo a trajetória mais acertada.

Fato é que, ao elegermos a vinda dos filhos - e aqui me lembro de uma professora de mestrado e doutorado na UFF, Beth Chaves, comentando os dizeres de uma amiga sua sobre o que mais a amedrontava na questão: a irreversibilidade da coisa; seu caráter "sem volta" -, rejeitamos todo e qualquer recall, toda e qualquer possibilidade de que nossa vida tenha a mesma relevância de antes daquele primeiro choro inaugural, daquela primeira tomada de colo, daquele processo de "desempoderamento" que o sangue do nosso sangue traz.

Sei que muito da sedução da paternidade/maternidade, para muitas pessoas, reside numa fantasia do filho ou da filha como continuação de si mesmo, como uma instância biológica de repetição que será capaz de fazer melhor o que você já fez, de consertar os erros em que você caiu, de satisfazer desejos e aproveitar oportunidades que você desperdiçou, de conseguir aumentar o tamanho do roçado ou do capital da empresa ou da clientela do escritório... Não à toa, a sabedoria popular parece traduzir tanto essa nossa fissura inconsciente (ou talvez sua porção genética nem a faça tão assim) quanto o determinismo que, muito antes de Gregor Mendel, nós como raça já sabíamos operar entre nós, animais: "filho de peixe, peixinho é"; "an apple doesn't fall too far from the tree".

(e aqui vou me privar de fazer comentários sobre política contemporânea e dinastias à brasileira, embora a língua e os dedos cocem que só)

Cervantes, já no primeiro parágrafo de seu "Quixote" (sim, como muitos de vocês, estou aproveitando a quarentena para tentar colocar antigos projetos em prática: ler finalmente a história do fidalgo da Mancha é um deles), segue por esse tom ao pedir desculpas logo de saída ao leitor dizendo que "gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar. Mas não consegui contrariar a ordem da natureza, em que cada coisa gera seu semelhante" (página 41 da tradução de Ernani Ssó, em edição de 2012 da Penguin Classics / Companhia das Letras; os grifos são meus). Como todos os pais (e como Cervantes com seu livro), sempre desejei que o bem fosse a estação com mais dias no calendário dos meus três meninos; mas nunca foi sua semelhança com meus trejeitos, com meus contornos ou com meu passado o que me encantava em nosso romance-de-cavalaria-real a oito mãos. O que sempre me encantou mais foi o que eles tinham de só seu, o que os fazia criaturas únicas e jamais por essa terra antes imaginadas.

A novidade que cada filho traz não só à existência dos pais como ao universo em seu todo é que me parece ser o verdadeiro milagre, a verdadeira bênção de se fazer a opção do "tê-los para sabê-los". O indecifrável que há em cada um deles, o potencial indevassável de cada uma de suas vidas em processo é o que verdadeiramente traz esperança e alento ao mundo. Mais que nunca, são eles o futuro (mas um futuro em aberto, ainda velado e por isso instigante); nossas crianças.

Hoje faz aniversário meu filho Henrique, meu mais velho de três. Duas décadas me jogando na cara quantas solas de sapato eu já gastei, quantos dias eu já vivi, quanto ainda me falta para aprender. Com o muito que nos amamos, nunca conseguimos muita trégua para nossa convivência, com os sacolejos que minha separação da mãe dele nos fez (a todos) passar. Conforme ele tem crescido e se tornado "his own person" (recordando aqui um e-mail antigo que recebi do guitarrista Nick Barrett, do grupo inglês Pendragon), temos procurado construir mais pontes que abismos entre nós. Por exemplo, mandamos músicas novas um para o outro, tentando fazer melhor que os algoritmos de Spotifys e Youtubes da vida; sugerimos leituras, filmes; cultivamos conversas. No meu caso, procuro ser para ele alento "fingindo" que sei mais dos mistérios da vida, quando ele precisa de um porto seguro pra chamar de seu.

Henrique, ao nascer, foi um grande ato de fé sussurrado a mim (e à mãe dele) pelo mundo. Fé em que tudo se transforma, fé em que os filhos poderão porque serão; fé em que tudo passa. E que isso é bom.

No bairro onde moro, em Maricá, vivemos numa quase roça, onde há muita gente humilde e casas bem pobrinhas, onde o susto que se está vivendo pela atual emergência pública não deve ser pouca coisa. Ainda assim, as pessoas têm coragem e humanidade para impulsionar as outras pessoas, dar seu próprio testemunho de força e resiliência - como nessa porta que fotografei, em uma saída essa semana pra comprar pão.





Fé, gente (em Deus, na ciência, nos filhos, no irrepetível da vida...). Como escreveu minha anônima vizinha, tudo vai passar.

Pra terminar esse longo texto, queria deixar com vocês um poema escrito em 2002 para Henrique, quando eu estava em turnê com a banda Focus no Chile, e um áudio com a canção "Já vai tarde", do Phill Veras, interpretada pelo meu filhote, num desses dias em que estávamos procurando artistas que nos lembrassem o Los Hermanos.

Fiquem todos bem!

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Viñas da ira boa


Meu filho Henrique, sabotador de outras alegrias.

Meu amor Henrique, embotador de todos os demais prazeres.

Meu lorde Henrique, destruidor de cada um dos espaços de tranquilidade e desapego;de todas as horas em que eu me achava livre, sem dever nada a ninguém.

Meu captor Henrique, que cresceu olhos para me vigiar até quando dorme, através dos meus.

Meu encanto Henrique, que me tornou obsoleto e defensivo, despedaçado por tudo aquilo que não me cheira a teu; vinhos chilenos, paisagens de Viña ou amizades holandesas.

Leonardo Nahoum (Viña del Mar, duas da manhã de primeiro de novembro de 2002)

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Henrique Barreira interpretando Phill Veras

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 1)

Minha primeira "cara" foi de biólogo; fui projeto disso nos meus primeiros anos de adulto-gente, quando comecei a fazer no Fundão, em 1988, três ou quatro semestres que me marcaram pra sempre, seja porque vivi ali amores (sofridos, mornos, com direito a filhos futuros e a revivals-repetição), seja porque ali conheci primeiro um mundo maior do que a provinciana Niterói, seja porque naqueles corredores fiz amizades que ainda perseveram, mesmo que predominantemente pautadas pelos grupos virtuais da vida. Por conta dessa primeira "cara", tive cedo contato com algum aprofundamento de leituras sobre evolução, darwinismo, etc., e daí me vieram brincadeiras, quando fui pai pela primeira vez, em 2000, de falar que "eu agora estava obsoleto para o universo; já havia passado meus genes pra frente - já podia morrer".

Embora me seja algo antipática a questão do lugar de fala como alijador da legitimidade dos outros para discutir o que quer que seja, não sou cego, porém, à sua relevância para a análise das posições e dos discursos. Da mesma forma que penso, por exemplo, que a homossexualidade de um autor deve ser, sim, levada em conta pelo pesquisador que se ocupa dos seus textos (como fiz, na minha tese, com o trabalho de Ganymédes José), acredito também que a paternidade (ou maternidade, não importa; a demiurgia da reprodução), quando chega, proporciona à pessoa um lugar de fala insubstituível, de ordem qualitativa. Ele não é pretexto nem justificativa, porém (quero deixar claro isso), para fazer das pessoas melhores educadores, melhores professores, melhores nada; apenas mudamos por dentro, passamos a entender o mundo por outro ângulo - é como ler Clarice Lispector antes de se apaixonar de verdade e depois.

Pedrinho, meu caçula, faz 14 anos hoje. Fruto muito querido do meu segundo casamento, ele já me fez, como o irmão mais velho, me sentir ultrapassado, superado, daquela forma que os filhos fazem sem que a gente se sinta ameaçado. Uma hora estamos lhes trocando fraldas, ensinando seus primeiros equilíbrios, na outra estamos vendo aqueles seres desenharem melhor que a gente, falarem uma língua desconhecida para nós, terem mais inteligência emocional, afirmar-nos suas individualidades, enfim.



O dia hoje é dele, Pedrusco, ele que, pequerrucho, já me surpreendia, aos sete anos, com a seguinte dedução, brotada no meio de uma conversa com o irmão do meio, Jônatas: "Todo mundo é estrangeiro pra todo mundo".

Aqui vão alguns poemas, então (meus e dele), devidamente desquarentenados por essa publicação, para celebrar esse dia que será de bolo de chocolate caseiro, fondue de queijo a quatro, chamadas virtuais e amor-perseverança.

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SOU UM LEÃO

Não sei voar ou cantar bem.
Mas sou alguém.
Posso não ser amigo de ninguém. Mas sou alguém.
Sendo eu mesmo, ninguém me derrota, ninguém me bota no chão, não sou um rato, sou um leão.

Não tenho medo de nada, pois nada me acertará, nem uma onda de tristeza, nem uma avalanche de escuridão.

Nunca caio, se eu caio, me levanto. Tudo que falam não me importa, sejam suas palavras xingamentos ou críticas, uma palavra ruim, nada vai ser o meu fim.

Pra mim, o fim não existe, só a continuação, sou um tigre, sou um leão.

Pedro Ordoñez Pache de Faria, 19 de maio de 2016

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INSILÊNCIA

(filho é tão bom, mas dói)

(dói por doer)

(só por ser o que é)

(nem é o susto de vocês, que é um coração que não bate mais por dentro e por isso apavora, só por estar fora)

(mas é semente insilente, um dia quente, de latejo-gozo, um jorro que virou gente)

(e a gente, quando sente, vê que a lida de repente nunca mais é só presente)

(é antes os dias deles que a gente perde, os minutos cada vez mais ausentes, os amores que nos tomam a frente)

(filhos vêm para roubar a vida, dando em troca tudo... e a gente nem sente, nem sente...)

Leonardo Nahoum, maio de 2010

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BEM-SONHADO

Dormiu, meu amor de 4 anos...
Dormiu sereno, seguro, amado, quente e calmo...

Dormiu debaixo do meu teto, da minha dor e alma, debaixo das minhas asas zelosas e atentas, do meu riso metade dele, metade do irmão.

Dormiu pra acordar ao meu redor amanhã, pra me assombrar com uma riqueza que nunca tem cara de repetição.

Dormiu meu filho, dormiu e sonha...
...
...e sonha o Bem.

Leonardo Nahoum 22 de maio de 2010