segunda-feira, 20 de julho de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 3)

Está aflito com os arbores da vida adulta, meu filho do meio "emprestado". Desde que o conheci, quase dezessete anos atrás, rugas tensas sempre foram a principal marca de expressão em seu rosto arredio de dois anos e meio e de agora quase dezenove. A proximidade da obrigatoriedade imposta por tomadas de caminho tem feito com que meu menino "emprestado" seja visitado por enxaquecas, pequenas crises de ansiedade e mal-estares próprios do "coming of age": pra que lado vou? serei bom de verdade fazendo alguma coisa? conseguirei encher meu pai de orgulho e minha mãe também? que faculdade fazer? que vida profissional abraçar? que projeto de mim serei digno de ser?



Quando eu estava sai-não-sai de uma (primeira) depressão, nos idos de 1997, uma das bizarrices que coloriram aqueles dramáticos dias foi uma visita a uma numeróloga (essas coisas que a gente faz sem acreditar, deixando margem pro "vai-que...; vai-que te ajuda a se conhecer melhor"). Eu estava ainda em meu primeiro casamento e alguns anos distante da paternidade, mas a moça cravou, esotérica mas cheia de conhecimento e certeza de causa: "estou vendo três crianças fazendo parte da sua vida". Meus filhos (de sangue) Henrique vieram tempos depois, com diferença de seis anos entre eles. Jojô, Jônatas, chegou no meio, fruto do primeiro casamento de minha esposa, e devo dizer que fui talvez algo ardiloso quando de nosso primeiro encontro, talvez pela culpa que sentia por ter tido parte no lar desfeito que era agora sua casa: comprei meu menino "emprestado" com um bombom - um Serenata de Amor ou um Sonho de Valsa-, que ele muito desconfiado não recusou, e de lá pra cá celebro num canto muito meu do coração todo sorriso que recebo dele, toda manifestação de amor mais física que conseguimos trocar. Porque elas sempre foram um desafio muito difícil pra mim.

Semanas atrás, vendo um dos episódios da série "For all mankind", da Apple (que basicamente descreve uma linha temporal alternativa na qual os soviéticos chegaram primeiro à Lua), fiquei pensativo ao ver e rever a cena na qual o astronauta interpretado por Joel Kinnaman (de "The Killing" e "Altered Carbon") está na calçada de sua casa americana de classe média dedicando alguns parcos minutos de atenção ao filho que pouco o vê. Aulas de bicicleta. O pináculo do heroísmo americano grita com o pequeno, é rude ao avaliar suas quedas que se repetem, toda vez que o pai impulsiona a bicicleta sem qualquer outro tipo de apoio, sem vir correndo atrás, com a paciência de quem deveria esperar asas fortes de sua cria antes de qualquer empurrão para fora do ninho. Lembrei, claro, de meu próprio pai me ensinando a andar de bicicleta e como eu me recordo dele segurando a Monark pela parte de trás, conforme eu me ajeitava, ouvindo sempre sua voz firme e encorajante, até que o equilíbrio "acontecia" e, surpreso, eu olhava para trás para constatar que meu pai, afinal, me soltara dizendo (sem dizer): "Vai...".

Tudo isso para, claro, voltar a Jojô e a todo conflito que sempre foi para mim equilibrar meus desejos de oferecer carinho e por outro lado respeitar meus limites muitos consolidados de nunca querer tomar o lugar do pai dele, presença constante e absoluta (por exemplo) em todos os seus finais de semana desde a separação. Conforme ele ia crescendo e o "Tio Léo" se tornava uma parte não-negligenciável de sua vida afetiva, de sua formação (para o bem ou para o mal), íamos, eu sinto, tateando essa zona de penumbra na qual nosso amor por vezes podia se manifestar - mas de cada abraço que consegui enrolar nele, de cada beijo que logrei pespegar em seu rosto, dez outros ficaram pelo caminho, tolhidos por certo respeito a um outro papel (o de pai "pai") e a um outro lugar e tempo. E respeito à voz do sangue, também. Tenho, sempre tive, muitas dúvidas sobre até que ponto deve-se refrear apoio, afeto, mesmo em casos assim, quando um padrasto não quer confundir uma criança querida sobre quem é seu pai. De qualquer forma, meu menino "emprestado" é meu terceiro tesouro e, mesmo envergonhado por uma economia de afagos e carinhos que nunca fez jus ao meu amor por ele, digo aqui para sua leitura que não consigo imaginar um mundo onde nossas vidas não sejam assim, emboladas, na presença dos casamentos e na relativa distância das separações.

Enquanto me preparo - com alegria - para terminar minha licenciatura em Letras e começar uma nova carreira como professor de Língua Portuguesa e Literatura, são dele os mais marcantes exemplos iniciais que pretendo levar pra minha verde e crua prática: o de quando ele dizia "quatros", extrapolando como toda criança linguisticamente brilhante o fonema "s" marcador de plural que ele já identificara em "dois" e "três", e que prova o como já somos mestres no idioma que falamos; e o de quando sua mãe, sem tempo para dar uma explicação mais demorada sobre os elementos do cabeçalho de uma tarefa da escola, disse a ele simplesmente que o "ano" era sempre daquele jeito, o que fez com meu menino "emprestado", na série seguinte, tascasse o ano anterior, de maneira automática, em todas as datas que escrevia.

Hoje assistiremos a um desenho juntos, a convite dele (coisa rara), e espero que haja espaço, entre uma e outro cena, para um afago, quem sabe um cafuné meio sem jeito meu. E que ele continue, nas brechas que cabem a mim, a dividir vezenquanto comigo suas dúvidas, seus anseios ainda mal concebidos, seus choros e risadas, que seguem tão luminosas quanto nos distantes dias em que seu melhor amigo era um robô.





3 comentários:

  1. Que leitura maravilhosa!
    Estou emocionada, não só pelo texto, mas por conhecer a família linda que são!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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