terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Über alles, o pão

Em novembro de 2019, meu filho mais velho ficou mais de mês sem falar comigo. Não ligava, era lacônico nas respostas via Zap, permaneceu irresoluto na irritação dele com a minha pouca disposição para acatar suas sugestões para meus problemas profissionais e financeiros. "Uber, pai. Falei com um cara, dá pra tirar uns 4, 5, 6 mil". O plano mirabolante dele envolvia usar o carro do avô e certa dose de commuting (para mim) entre Maricá e Niterói, onde eu trabalharia horas com um automóvel "supostamente" à minha disposição (por meus pais o usarem pouco, etc e tal).

Meu pouco entusiasmo com a ideia (não mencionei a ele certo receio da violência das ruas), e meu estar pouco à vontade com usar desse jeito o carro de meu pai (do qual já abuso, em minhas idas frequentes a Friburgo pra fazer provas da faculdade EAD de Letras), tirou ele do sério. Deixei ele triste e com raiva de mim. E fiz com que ele me tratasse com uma frieza que eu ainda não tinha testemunhado em 19 anos. Culpa minha, muito disso. Nesse mês e meio de indiferença, chorei quieto algumas vezes.

Em dezembro, tive que fazer uma cirurgia. Boba, até. Mas me encaminhei a ela com aquelas cismas que dão na gente (aos 40 e muitos), pensei que iria morrer, que a anestesia ia cruzar circuitos em mim e todos os meus planos de resolver lacunas de vida  - o desemprego de quase três anos, os livros e artigos a escrever, as pesquisas ainda a fazer, os CDs e DVDs ainda a lançar, a horta a erguer do solo mal-tratatado do quintal dos fundos - iam virar fumaça.

Passou a cirurgia, tive poucas visitas. Minha esposa, minha madrinha (fiquei nos meus pais); o filho magoado, não. Mas no meio da tristeza do ainda gelo da parte dele, vi que o medo tinha sido mesmo bobo. Estava eu ali, do outro lado, e a horta poderia florescer. Os outros planos também.

Um deles foi criar esse blog com esse título dedicado à crise com meu filho (que já começa a passar), e à necessidade incessante que todos temos de ganhar o pão, de garantir o sustento, de ser isso o mais básico do básico. Über alles, o pão. Acima de tudo, o pão nosso de cada dia. Até porque nem sempre funciona o tal "nos dai hoje".

Começo hoje o blog (último dia de 2019, né) e termino ele com uma sugestão de leitura (acho que pode ser um bom mote para todas as postagens: sugestões de leituras, livros, HQs, séries, filmes, artigos, pessoas - minhas relevâncias e irrelevâncias): "Laura", romance de estreia de Karin Scarpa pela Chiado Books. São 11 pequenas narrativas em primeira pessoa sobre 11 mulheres, todas elas às voltas com Laura e com as atmosferas de 2019 e 2018. É um livro de resistência, de força e de sensibilidade. Se, como escritor, eu teria feito uma ou outra coisa diferente, não posso deixar de elogiar o bom tom da escrita, o formato original da construção do volume e de suas vozes, e a atualidade urgente dos temas debatidos ali. Terminei meu ano de leituras terminando "Laura" e feliz por tê-la conhecido. Vocês podem começar com ele (com ela) o 2020 de vocês.

"Laura" - Karin Scarpa









3 comentários:

  1. Alvíssaras, Sr. Leo! Parabéns pelo blog. És um sobrevivente! Sobrevivente não apenas à cirurgia, mas tbm pelo fato de transpor o abismo que as dificuldades financeiras e os questionamentos do caminho profissional e responder c uma pirueta criativa e, para usar o termo clássico, pró-ativa traduzido no presente blog! Adorei! És tb, um sobrevivente por já estar conseguindo reconstruir esse fosso de silêncio com teu filho de 19 anos mediado por um mutismo e ausência física. Irmano-me contigo, Bro, pois também lido com tal postura com a minha filha mais velha, que fará 19 anos, que você bem conhece. Sabe que serei leitor assíduo do bró-gui, Bro! Sucesso. E fique com minha frase: Ademã, que eu vou em frente! Ops, Just kidding, São Seus vai me excomungar. Kkk A frase, na verdade, é: Só o talento vinga.

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  2. Fala, Nahoum.
    Caramba, cara. Quanto tempo? Sei lá, lá se vão mais de 20 anos que não nos vemos e tanta água rolou, não faço idéia.
    Vi que andas muito por Maricá e que tem encontrados grandes desafios pela frente, pois é, eles não param de aparecer por aqui também. Fora um detalhe aqui e outro acolá, as vidas são muito parecidas. Uma vez li que se pegarmos a vida de 10 pessoas e traçarmos as interseções, será possível criar a história de 90% da humanidade ; )
    Com essa sua primeira postagem no seu blog, eu pude perceber que continuas escrevendo perfeitamente, parabéns.
    Queria deixar um abraço e desejar sucesso em tudo que for encarar pela frente, meu caro, e sabemos que não serão poucas as situações.
    Cuide-se.
    Julio Bisneto

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    1. Oi, Júlio. Verdade, esses encontros e emaranhados dão muitas histórias! Coragem pra nós, nesses desafios que estão sempre se atualizando! Obrigado pela mensagem e pelo contato!

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