quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

O preconceito nosso de cada dia

Na sexta passada, dia 3 de janeiro, fui com minha esposa (convite dela para uma noite a dois, o que foi muito bom, all considered...) assistir a "Minha mãe é uma peça 3", de Paulo Gustavo, humorista que é um dos poucos por aí que consegue tirar de mim risadas fáceis.

Comentando com meu pai depois, que nisso é parecido comigo (não oferece suas gargalhadas a qualquer coisa - filme, peça, esquete, piada, atriz, ator), concordamos que o texto do filme nem é lá nenhum prodígio de boas tiradas, abusando de palavrões algumas horas e de certas situações um pouquinho inverossímeis; mas Paulo Gustavo, na pele da personagem maravilhosa, Dona Hermínia, é fantástico. Ele conserta qualquer mau diálogo, qualquer cena mais fraquinha, qualquer roteiro ruim (e nem era esse o caso, não). Gostei da diversão que o filme proporcionou, ri um bocado e fiquei feliz de ver as quase duas horas como, afinal, uma espécie de brado (sem volume no máximo, pra não distorcer o som e a mensagem) de tolerância, de celebração do amor - qualquer amor - em tempos nos quais as pessoas voltaram a se sentir à vontade para fazer piadas sobres gays, negros, mulheres e as outras opções do costumeiro cardápio de minorias.

Sempre fui particularmente consciente de que a existência gay deveria merecer menos olhares tortos sociais; mas não de pronto, claro. Cresci em meio a um ambiente onde os papéis de gênero sempre foram muito marcados e onde muitas das piadas e "brincadeiras" feitas (ainda não se falava em bullying) entre meninos (amigos ou irmãos) envolviam homossexualidade. Claro, sei que não estou sozinho. Se posso afirmar que não lembro ter ALGUMA VEZ na vida feito gracejos racistas (como o competente e perdoadíssimo por As, Bs e Cs William Waack alegadamente fez on tape), seguramente irei para o inferno se depender das jokes e brincadeiras usando palavras como "gay", "boiola", "boneca" e quetais. Até hoje é difícil superar o hábito arraigado; volta e meia, escapole uma brincadeira com esse tom que, no fundo, é apenas preconceito e mau gosto e desrespeito pelo espaço do vizinho.

Com a proximidade e o aumento da possibilidade da eleição de Jair Bolsonaro, antes mesmo de 2019, percebi que dávamos muitos passos pra trás em tudo que se relacionava a respeito ao outro, aos outros, ao diferente. Se no começo, dez anos atrás, eu era um dos que se incomodavam com os excessos do politicamente correto, hoje penso duas, três vezes, e na maioria delas me alinho com os ofendidos: como disse o Guga Chakra, se o "white face" ofende, desculpe, Eliane Cantanhêde, mas tem problema, sim: por que fazer? por que oferecer sofrimento desnecessário àquele ser humano que reclama? Um dos meus escritores preferidos, Carlos Figueiredo, autor da série "Dico e Alice", umas que estudei no doutorado, diz que penou por muitos anos atrás de uma bússola moral que o satisfizesse. Encontrou ela nos livros de uma autora (a referência me escapa agora) que aponta para isso: todos deveríamos diminuir o sofrimento desnecessário na vida e no mundo, todos deveríamos trabalhar por isso, por sua diminuição.

Ver o filme de Paulo Gustavo, com seu casamento gay e suas histórias tão humanas, foi bom para lembrar o quanto se pode recuar civilizacionalmente em tão pouco tempo... O que parecia já conquistado, sólido, direito pétreo, vira fumaça, desaparece, em nome do direito de quem quer viver a vida, em todos os espaços e tempos, como quem está sempre no botequim da faculdade, em meio aos amigos héteros-brancos-zona-sul (lembrei também do selfie-video do estudante de Direito gritando que ia "matar a negrada" e que "agora é Capitão, porra!"). Por isso, há que se estar alerta, há que se combater os avanços da obtusidade - por muito que esteja tão difícil. Três anos atrás, eu debatia com amigos da faculdade, no WhatsApp, porque alguém disse que não gostaria de convidar para o grupo um ex-colega recém-encontrado por ter visto no perfil dele frases pró-Bolsonaro. Surpreso com aquele... preconceito... eu argumentei que os potenciais eleitores do deputado, na casa dos 20% à época, não poderiam ser todos nazistas-racistas-fascistas - e que precisávamos manter abertos os canais até para entender o que estava acontecendo. Inclusive, procurei desencorajar o hábito que grassava de chamar o sujeito, tosco que seja, de "Bozo", "Coiso", etc. Um erro não conserta o outro, né, Roberto? Semanas e meses depois, fui descobrindo à minha volta outros eleitores dele: meu pai, meus irmãos, vários tios, etc... Preconceito é mofo perigoso que se espalha democraticamente (rsrs), em todas as direções.

Ano passado, ao saber da série que sairá pela Netflix baseada na HQ "Sandman", resolvi pegar minhas revistas pra ler e percebi que nunca havia lido toda a saga - devo ter parado aí pelo número 20 e pouco, talvez. Ao chegar no #37 (lançado originalmente em maio de 1992), dei estupefato com o seguinte quadrinho, no qual Alvin (nome de batismo da transsexual Wanda) está para ser enterrado em sua pequena cidade natal. Vejamos o que uma amiga da família tem a dizer sobre ele e sobre diversidade de gênero e de opções sexuais:



Pois é, Damares... Meninas de rosa, meninos de azul... Neil Gaiman já esfregando essas bandeiras na cara de seus leitores 28 anos atrás e o que parecia avanço e maior tolerância vira fumaça, como a do cigarro que se vê aí em cima, nos traços de Shawn McManus.

Por volta de 2012, give or take, contratei um rapaz para estagiário da consultoria na qual eu trabalhava. Coordenei o processo de seleção, fiz a entrevista, etc. Ele era o melhor e até mesmo escrevia melhor que TODOS os candidatos a redatores (ele estava entrando como designer gráfico). Falava muito bem, estava bem vestido, testes muito bons, só coisa positiva. Meses depois (ele não era nenhum gay do tipo "clássico", não tinha trejeitos de nenhum espécie, por exemplo; não dava "pinta", como é costumeiro dizer), fiquei sabendo que o rapaz era homossexual, inclusive vivendo com um namorado-marido mais velho. Foi então que percebi o quanto das piadas que eu mesmo fazia naquele espaço onde todos nós habitávamos durante as horas de trabalho envolvia as mesmas "brincadeiras-com-viado" da minha infância, adolescência e boa parte da vida adulta - e, noves fora qualquer coisa, pensei logo no possível incômodo do qual eu era o causador. Passei a me policiar e, simplesmente, entendi que os tempos haviam mudado, que eu devia mudar e acompanhar o que simplesmente eram regras de convivência mais respeitosa, e que aquelas coisas NUNCA haviam sido legais de se fazer.

Mas aí vem 2018, 2019, e todos achamos que o valor maior é o de ofender, o de viver códigos de comportamento cospe-grosso, e que nosso direito de ferir os outros em sua diferença é maior do que o direito à diferença em si. Tá foda, viu... (e desculpem o palavrão, mas às vezes é só o que resta em termos de linguagem)

Se puderem, vão a "Minha mãe é uma peça 3"; além de ser cinema nacional, que merece o apoio, é diversão certa e fígado desopilado.

P.S.: Uma coisa que não entendo, e isso tem um pouco a ver com o curso de Letras que estou terminando... Como uma produção tão bem cuidada como a do filme sugerido deixa passar, na carta aberta pessoalíssima ao final, reproduzida em tela, erros crassos (crase) que acabam pinicando no olho desse para-sempre filho de professora de Português? Já fui muito chato e bobo com coisas assim, gramatiquices e ortografices, e mudei muito minha postura depois das disciplinas de Linguística na faculdade (a gente tende a ser mais generoso com o idioma e com seu uso, coisa que me fez gostar menos das sempre inteligentes e - tecnicamente - bem urdidas colunas do Eduardo Affonso... ou será só uma desculpa, coisa de escritor invejoso que prefere não ler mais textos que gostaria de ter escrito? :-) ). Ainda assim, me parece um desprestígio para com a profissão de copidesque, de revisor... PAGUEM alguém pra ler seus textos, por favor. A gente NUNCA escreve tão bem (a norma culta) como acha que escreve - valorize o profissional de Letras, mesmo que seja pra depois não ficarem apontando dedos para sua obra por conta de erros que deveriam ser (e são!) desimportantes.


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