quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A Biblioteca dos Amores Não Vividos

Em vários números da HQ "Sandman", a começar pelo #22, Neil Gaiman brinca com uma biblioteca de livros inexistentes, jamais escritos, mas sonhados, que existiria no reino de Oneiros (como o Mestre dos Sonhos era conhecido entre os gregos). Lá, como se pode divisar no detalhe da página 2, reproduzida abaixo, estão preciosidades como "A estrada perdida", de J.R.R. Tolkien, "A consciência de Sherlock Holmes", de Doyle, e "O homem que era outubro", de Chesterton.




Vários outros autores já experimentaram com essa ideia de uma biblioteca absoluta, com todos os livros escritos e ainda a escrever (Borges é um deles, se não me engano), e não são poucos os volumes a explorar esse nosso fascínio por manuscritos perdidos ou simplesmente imaginários, recantos virginais da produção de escritores queridos e de quem saudaríamos páginas novas como quem reencontra amigos que julgávamos perdidos para sempre.

Mas e os amores apenas imaginados? E os amores nunca vividos, nunca passados de botão? Haveria em algum lugar uma biblioteca para preservar (já com começos, meios e fins) todas as histórias do coração que nunca foram, por conta desse ou daquele desencontro, por culpa dessa ou daquela carta extraviada, insinuação não compreendida ou mesmo... declaração de amor nunca decifrada?

No dia primeiro deste ano, enlevado tanto pelo espírito ano-novista das resoluções, que nos faz sacolejar gavetas empoeiradas para jogar fora papéis, tranqueiras do desuso e outros obstáculos das arrumações da vida (material e do espírito), quanto pelo memória do meu avô (filho de libaneses que aniversariava justo no dia inaugural de janeiro), lembrei de repente de um livro que ganhara quando tinha 18 anos (aí pelos finais de 1988), ou seja, pouco mais de 31 anos atrás. Nele, na folha de rosto, a responsável pelo presente, de nome Cátia (ou seria Kátia?), pespegara uma dedicatória enigmática, em árabe (!?), que provocou protestos meus na hora, claro, mas aos quais a autora apenas retrucou com um meio sorriso e um levantar de ombros, sem oferecer arremedo ou chances de tradução.




Não lembro muito bem dela, dessa Cátia-com-K-ou-com-C; recordo-me que talvez a tenha conhecido em alguma festa de faculdade dessas que agregam gente de vários cursos, no Fundão, ou talvez em algum outro evento de gente da minha idade, no Ingá, em Niterói, porque tenho vislumbres, por entre os neurônios falhos, de conversas nossas durante a viagem de 998 até o Fundão. Ela tinha pele clara, cabelos talvez um pouco crespos, mais para claros que escuros, olhos expressivos, e fazia Letras, provavelmente Português-Árabe. Acho que, à época, cheguei a desconfiar que havia algum interesse por parte dela em mim, já que não era comum para a criatura desengonçada que eu era conseguir entabular trocas verbais mais demoradas com o sexo oposto, mas nunca houve nada entre nós, nenhum "handshake protocol das relações humanas" que levasse os papos-que-nem-flerte-eram (de minha parte) a algum outro patamar. Numa das últimas conversas de que tenho lembrança, cheguei a comentar com ela que estava enrolado com uma menina veterana do meu curso (Biologia), mas que a tal já teria um noivo-namorado e eu estava no meio da confusão (o resultado foi a mocinha voltar pro cara e eu amargar umas duas semanas de fossa pelos corredores do Instituto). Ela a tudo ouvia e só meneava a cabeça, complementando o olhar de reprovação (e tristeza?) com um alerta: "- Acho melhor você sair dessa, é furada". Não saí; fui saído. Sofri lá, paguei as penas, e nunca mais (que me lembre), passados meses e anos, voltei a ver Cátia-com-K-ou-com-C.

O livro que ela me deu, porém, foi ficando; atravessou 5, 6, 7 mudanças, separações, casamentos, recasamentos (que é quando você volta a casar com quem já fora casado), e permaneceu sempre em alguma prateleira minha, qual esfinge que, além do conteúdo inexplorado (porque nunca cheguei a lê-lo), ainda ostentava o tal enigma que me deixava sempre com gostos de analfabeto na mente, mas que eu nunca me esforçara por decifrar. Em tempos pré-internet, eu teria que ter ido a algum curso de Letras, pedir a alguém que lesse aquelas algaravias pra mim...

Sentado ao computador no dia primeiro de janeiro de 2020, com teclado, mouse, janela do WhatsApp Web aberta e amigos de toda parte a um clique de distância, tive um estalo: será entre os meus colegas da Biologia (ok, ok, curso que não terminei...), não haverá alguém que tenha um contato que saiba ler em árabe? Tasquei algumas linhas no grupo, mais a foto da tal dedicatória, e a tradução não tardou a vir (graças a um neurocirurgião no Cairo, insone, que respondia à minha amiga bióloga e juiz-forana às 3 da manhã):

"Para Leonardo;
Eu te amo".

Dia desses, conversando com meu filho mais velho outra vez, disse a ele (que me perguntava pela enésima vez por que eu ficara tanto tempo casado com a mãe dele se havia tantos problemas e dissonâncias entre nós) que eu não era de ficar retornando ao passado com esse tipo de amargor, querendo ter vivido outros caminhos, outras escolhas, outros trajetos. Retruquei que tudo o que passamos nos traz, de certa forma, ao momento presente e que, como não há nenhum outro momento, não se deve encarar a vida assim, numa espécie de ritual nostálgico de eterna lamentação por conta das estradas não trilhadas. E completei, com lágrimas nos olhos, que se eu tivesse me separado da mãe dele antes de 1999 ele não teria nascido; e eu não queria, de modo algum, viver num mundo sem ele.

Então, não é com nostalgia ou saudade ou tristeza ou mesmo com vontade de ter vivido esse-amor-que-não-foi que eu sorri ao ler a tradução da dedicatória que levou 31 anos e uns trocados para ser devidamente apreciada. Como comentei à minha amiga que me prestou o favor, é sempre muito honroso ser merecedor do amor de uma mulher (frase do Jabor?); não há nada que dignifique mais um homem. Mas fiquei também pensando naquele menino de recém-completados 18 anos e se haveria nele matéria humana que justificasse aqueles sentimentos por parte de alguém; no caso, por parte de Cátia-com-K-ou-com-C.

Espero que ela esteja bem, feliz e viva, e tenha topado ao longo da vida com gente mais merecedora do seu amor do que eu (que precisei de tantas comodidades e conveniências tecnológicas para enfim desvendar aquele charmoso e delicado mistério). Tudo de bom pra você, Cátia-com-K-ou-com-C! E obrigado pelas palavras!


P.S.: Uma coisa eu acho que devo a essa história (mais ou menos da mesma maneira que ouvi de uma tia - que não botava muita fé no meu casamento - quando meu primeiro filho estava pra vir: "A história de vocês já merece um filho"): embora não exatamente no topo da minha lista de interesses, penso que o livro merece uma leitura, que devo ao livro (e a quem mo presenteou - e esse "mo" saiu bem à Eça, não?) que ele seja ao menos lido. Tá certo que na época ele deve ter meramente servido de conduto para aquela dedicatória, que permaneceu não compreendida por tantos anos; mas é uma maneira de honrar, de certa forma, aqueles anos de descoberta, de caras e corações quebrados, de amores vividos e outros desencaminhados, quando eu embarcava no 998 naquele ponto mal ajambrado da rua Ernani Mello em direção aos mistérios do ensino superior (da vida) lá nas lonjuras do Fundão.






2 comentários:

  1. É, rapaz, belo texto. Honrou o entrelaçar da vida de forma muito delicada, leve e séria (no sentido do respeitoso), não só do evento do ônibus, mas dos afetos todos envolvidos nessas três décadas. Kátia ou Cátia, onde quer que esteja terá orgulho e, certamente, dirá (sim, como disse outro dia desses para nossa outra amiga bióloga Larissa, sou patologicamente romântico): - Leonardo, bem que eu estava certa, já sabia que havia muito de iluminada matéria humana por baixo daquela criatura desengonçada que não conseguiu se ver. Sim, eu já me encantara pela sua sensibilidade. Você parecia tosco aos demais e até talvez para aquele Leo de 18 anos. É que você não tinha estudado nos bancos acadêmicos e nem suficientemente na escola da vida, a importância do distanciamento que só o Tempo nos traz.
    Bom, talvez seja só um papo de velho contemporâneo que adora uma narrativa bem escrita.

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    1. Honrar a vida parece sempre um bom caminho, não é, amigo escrevedouro André? :-) Obrigado pelos ecos, pelos afagos, pelo tempo de leitor.

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