sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Rondônia 451

O romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, tem me acompanhado desde a infância exercendo sobre mim certo fascínio que muito provavelmente se explica pelo meu amor aos livros e pelo horror que me causa a ideia de sua destruição deliberada. Para exemplificar melhor minha relação com essa linda invenção humana do universo da escrita, nada melhor do que esse pequeno texto que minha esposa, em 2018, escreveu sobre mim, às vésperas do meu aniversário:


Distopia publicada em 1953 que descreve uma sociedade de livros proscritos na qual "bombeiros" (firemen...) queimam obras, perseguem criminosos-de-pensamento-e-opinião e onde a resistência deve se dar, artesanalmente, pela resiliência da memória (as pessoas, para salvaguardar o legado humano literário, começam a decorar trabalhos inteiros, colossos como Moby Dick, se responsabilizando pela sua preservação em meio àquele verdadeiro holocausto), Fahrenheit 451 me inspirou, décadas atrás, a começar uma noveleta de ficção científica deixada pela metade, de título "451 soldiers" (à qual eu talvez retorne um dia), e plantou em mim o interesse pelo mistério dos livros perdidos, dos manuscritos extraviados e, em última análise, pelas violências da censura.

O título desta postagem, obviamente, é uma referência à denúncia que correu todos os noticiários ontem envolvendo o memorando da Secretaria de Educação de Rondônia, às suas coordenadorias regionais, no qual se ordenava o recolhimento de livros considerados de "conteúdos inadequados às crianças e adolescentes". E, antes que me acusem de exagero, já que não houve (ainda...) nenhum Bücherverbrennung (termo alemão que ficou associado à queima nazista de livros promovida na Alemanha entre 10 de maio e 21 de junho de 1933), ressalto que o mais importante em "Fahrenheit 451" não é tanto a imagem das piras de papel que tem suas almas transformadas em cinzas, mas sim o silenciamento, o fazer desaparecer... e isso se dá tanto com a queima quanto com o encaixotamento rondoniense (segundo a reportagem inaugural, do Estado de São Paulo, os livros condenados pelo Secretário de Estado da Educação de Rondônia, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, já estavam separados dentro de caixas, em algumas escolas, à espera da coleta).

Quanto retomei pra valer minha vida acadêmica, em 2012, com o mestrado em estudos literários, levei comigo, como projeto de pesquisa, uma análise sobre a série "Inspetora", de Ganymédes José, coleção publicada no Rio entre 1974 e 1988. Além do interesse por literatura infantil (e popular) em geral, motivado em parte pelo fato de meu filho caçula estar à época se alfabetizando, havia também,como elemento fortemente instigador, a descoberta que eu fizera de um livro da coleção aparentemente não publicado ainda lá em 1974. O título aparecia em listas ao final de alguns volumes, mas depois sumiu, nunca veio a público. Pensei logo, claro, que poderia haver ali naquela pena alguma galinha inteira, como se diz, e coloquei em meu projeto a hipótese de (auto)censura, isso ainda sem saber do que se tratava o tal título suprimido (o que deveria ter sido o  numa série que teve outros 30 e poucos episódios...) e se seria possível ainda encontrar seus originais. Acabei localizando o tal manuscrito perdido, sua leitura me deixou convicto, sim, que a autocensura de fato ocorrera (o original em questão chamava-se O Caso do Rei da Casa Preta e falo sobre ele tanto em minha dissertação quanto em minha tese de doutorado), e toda a história avivou ainda mais em mim o interesse por esses cerceamentos de expressão e de circulação de ideias. No caso brasileiro, especificamente, no que se refere ao período da ditadura militar, nos mecanismos de censura indireta, provocada pelo medo de represálias econômicas ou penais.

Lendo a primeira aula da disciplina "Literatura Portuguesa I", fui parar nas primeiras páginas do texto "Aula", de Barthes, e não posso deixar de relacioná-las a todo esse episódio e à todo o arcabouço conceitual envolvendo Infância, Literatura Infantojuvenil e a tutela que tão naturalmente nos arrogamos de exercer sobre o que deve ou não ser lido pelos pequenos, sobre a linha que coloca "adequado" desse lado e "inadequado" do outro. Refletindo sobre os mecanismos do Poder na sociedade, sobre a ubiquidade de sua influência e sobre a inescapabilidade de sua presença em todas as existências, subjetividades e relações, Barthes conclui que isso se dá porque não é possível ao homem existir fora da Linguagem; e a Linguagem, por mais que sirva (como ele mesmo diz) aos desvios e às transgressões (quando se encarna como Literatura), é, por natureza, mecanismo de força, de opressão, que não apenas instrumentaliza comunicações, mas que conforma o pensamento, que obriga seus usuários a esse ou àquele padrão; a ter sujeitos antes de verbos ou a ter, digamos, apenas esse ou aquele pronome para escolher.

Acompanhando as notícias sobre o "Rondônia 451", vemos o Secretário de Educação dizer que o tal memorando fora motivado por denúncias de que alguns livros conteriam palavrões! Impossível não sorrir diante da violência e caretice de tal ingenuidade, por mais perigosa que ela seja por estar no poder; e impossível não pensar de novo em Barthes e refletir que justo os palavrões talvez sejam nosso primeiro teste, como seres humanos, com o tal universo da Linguagem e com as estruturas sociais que se encontram ali refletidas; os edifícios do Inadequado, as alamedas do Permitido, as vielas do Apropriado. O que meu mundo social me deixa dizer ou não e o que meu mundo social, por sua vez, permite que me digam.

Na pouca literatura teórica que já consegui vencer sobre literatura infantil (todo dia, socraticamente, descubro que nada sei), já percebi que a "criança tutelada" ainda é uma "vítima" da sociedade como um todo, de nossas vontades de exercer pequenas censuras cotidianas traduzidas em listas de faixas etárias e adequações. Apesar de por vezes evoluirmos na questão do Infantil atribuindo-lhe certa contextualização histórica e de processo, na maioria dos casos a criança ainda é tratada como abstração cheia de universais, imutável, que merece apenas proteção contra o mundo. Como se a Linguagem fosse só fonte de ameaça e poder nocivo, e não o berço também da empatia, do desvelamento do mundo e do paralelismo das dores e das alegrias do próximo.

Estou terminando a edição de um novo livro, de autoria de Hélio do Soveral, e não por acaso trata-se de mais um caso (na minha opinião) de autocensura inspirada, em 1971, pela atmosfera de opressão oferecida pelo regime militar. Nesta aventura popular na qual Soveral narra, em primeira pessoa, a história de um arqueólogo norte-americano que descobre uma tribo de índios brancos descendentes de vikings, o autor aproveita para criticar os nacons (a casta de guerreiros - qualquer semelhança com castrenses é mera intenção) e sua capacidade de administrar a tal sociedade perdida, após terem assumido o comando com um golpe militar... Porque me deixa muito feliz resgatar um livro das garras das chamas fahreheitianas, das caixas rondonienses da vida e das gavetas (indiretas ou não) da ditadura - do silenciamento, enfim-, divido com vocês, a seguir, para terminar essa longa digressão, os últimos parágrafos de meu Posfácio à obra (de nome A Fonte da Felicidade), já que não me ocorre nada melhor como fecho (e porque é preciso denunciar que a censura e as tentativas de tutela idiota e idiotizada continuarão):


            Em artigo de 27 de maio de 2019 na Folha de S. Paulo, o filósofo Luiz Felipe Pondé, ao contestar as supostas causas da piora no humor dos cada vez mais depressivos jovens latino-americanos, afirma não concordar que, como diz a pesquisa a que se refere, a perseguição à liberdade de expressão possa estar verdadeiramente entre elas, as causas (ainda que assim declarado pelos entrevistados). Segundo Pondé,
a maioria esmagadora da população não liga para liberdade de expressão. Só quem liga para ela são jornalistas, professores, artistas ou intelectuais em geral. A menos que a repressão sobre a liberdade de expressão torne seu jantar impossível, ela que se dane. (PONDÉ, 2019. Grifo nosso.)


Pode até ser que, como afirma o filósofo, preocupações com a censura e com o cerceamento da circulação de ideias em toda e qualquer sociedade sejam uma espécie de "sexo dos anjos", isto é, um debate algo abstrato e elitista que não cabe na maioria das mentes mais ocupadas com a urgência de ver o pão servido sobre a mesa. Para aqueles privilegiados que garantiram já o jantar, porém, e que talvez por isso voltem suas inquietações para outras esferas, é de extrema importância revisitar estes períodos em que o pão do espírito nos foi negado; negado não por escolha, mas por imposição. A publicação em livro dos originais silenciados de A Fonte da Felicidade, de Hélio do Soveral, recoloca sobre nossas mesas esta quase apagada amostra de nossa surpreendentemente engajada literatura popular; este jantar tornado impossível (mas agora não mais) pela ditadura militar dos anos 1970.




PONDÉ, Luiz Felipe. "World Peace". Folha de S. Paulo online. 2019. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/luiz-felipe-ponde/jovens-burguesia-luiz-felipe-ponde/>. Acesso em: 28 mai. 2019.

5 comentários:

  1. Na sequência, ainda vi o Octavio Guedes, na Globo News, sugerir que Brás Cubas talvez tenha entrado na lista por causa do "Cubas" no título... rsrsrsrs

    ResponderExcluir
  2. Preciso e precioso texto, como de costume. Boa lembrança, além de Bradbury, Soveral e Ganymedes José, é a Aula, de Barthes, que conheci, em priscas eras, entre Fragmentos de um Discurso Amoroso e O prazer do Texto.

    Em tempo: parabéns ao texto da esposa, bela homenagem para ti e estou sempre às ordens para trocarmos ideias sobre Teoria de LIJ...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. André, ainda estamos nos devendo as nossas "Cidades mortas", hein? :-)

      Excluir