sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Melville, Poe, Soveral: buscando a própria identidade na multidão (em um mundo de maricas)

Faz alguns meses, consegui lançar mais um livro inédito de Hélio do Soveral (A fonte da felicidade), que descobri durante a longa pesquisa de doutorado. Dentre outros projetos que me movem, ultimamente, e que têm me ajudado a equilibrar humor e sanidade em meio a isolamento, crises domésticas, meia idade (fiz 50 em setembro...) e persistente desemprego, está a organização de um volume com a poesia de Edgar Allan Poe traduzida e comentada por Soveral ao longo de toda sua vida. Já recrutei para o barco Dagomir Marquezi, para a orelha; Rubens F. Lucchetti, para o prefácio; e Alexander Meireles da Silva (UFG), para a apresentação.





Poe foi o grande expoente e modelo literário para Soveral; era o seu herói. Ele segue despertando paixões e vive um momento de renovada popularidade, por conta principalmente de seu papel no delineamento da chamada ficção detetivesca, no despertar ocidental para o lugar da cidade em nosso imaginário e ainda para o próprio erguer-se da literatura de seu país natal. Tenho muito de Poe ainda para descobrir e ler, e trabalhar nesse livro sobre sua poesia será um crescimento para mim interessante. Melville é outro de que gosto bastante, e a quem preciso retornar. Nos meus vinte anos, li com prazer e vagar uma edição de Moby Dick da Francisco Alves (penso em voltar ao livro agora releendo-o na versão da Cosac Naify). Nesse último semestre de faculdade de Letras, pude comparar os dois autores em muito boas páginas da disciplina de Literatura Comparada, tocada exemplar e apaixonadamente pela professora Anna Faedrich (UFF) e pela tutora Claudine Varela.



Antes de continuar, cabe dizer que mais do que nunca a literatura é necessária. Bernardo Carvalho recentemente escreveu sobre isso, atacando as medievalidades do governo Bolsonaro e frisando que, longe de secundária/os, a arte, os livros, o literário, se impõe/m como força humanizadora em meio a torrentes de pura destruição. Dias depois da declaração do presidente eleito brasileiro, de que o país deveria deixar de ser formado por "maricas" e enfrentar (???) o coronavírus, circulou pelas redes um vídeo curto, do carnavalesco Milton Cunha, colocando em palavras toda a devida indignação necessária ante tamanha estupidez. Recomendo fortemente que o assistam.

Enquanto repiques da pandemia se chocam com dizeres brasileiros abomináveis e com o estremecimento Trumpiano da democracia mais poderosa do mundo em uma pororoca que parece tudo levar em seu caminho, a literatura (e o que em torno dela existe de busca identitária individual e coletiva) grita sua relevância.


Pensando novamente nos EUA que nos brindaram com o veneno Donald Trump, mas também com os bálsamos Melville e Poe... É preciso olhar para o que chamamos agora de literatura norte-americana (e seus primórdios) tendo em mente a noção de literatura tardia; como no Brasil ou como na Rússia, é apenas no século XIX para o XX que começamos a poder falar de uma literatura estadunidense de língua inglesa, reflexo cultural amadurecido de pouco em pouco ante a independência política do final do 1700s. Ao destacar como alguns de seus expoentes as figuras de Edgar Allan Poe e Herman Melville, Faedrich e Figueiredo aproximam os autores em parte pelo que de modernizador eles propuseram com suas obras: os séculos modernos são os séculos do olhar, são os séculos do ser humano visual, transformado cognitivamente e perceptivamente pelas transformações tecnológicas que já vinham plasmando nosso modo de viver desde antes da Revolução Industrial. No mundo eminentemente urbano agora, privilegiamos mais do que tudo o visual, o imagético, o descortinável. Poe, diz Faedrich, é “reconhecido por ser o pai da literatura policial, [com uma obra na qual] a questão do olhar é fundamental (...), nesse sentido se aproxim[ando] de Melville e seu capitão Ahab, cuja obsessão o impede de ver” (FAEDRICH et al, 2016,, p. 254). Embora menos canônico que Melville, que inscreveu algumas de suas prosas, como Moby Dick, entre as obras máximas do romance ocidental de todos os tempos, Poe tornou-se ainda assim uma figura fundamental para a literatura norte-americana, mas também a (contemporânea) mundial pelo seu profundo e profícuo diálogo com a cidade, com a urbe que se impunha como o novo locus humano por excelência. Ao fundar (pra valer) a literatura policial com os contos de seu Monsieur Dupin e ao penetrar na psicologia dos flâneurs e das massas em textos como “O homem na multidão”, Poe aproxima-se da questão identitária (norte-americana, mas não só) tanto quanto Melville em sua busca marítima da verdade metaforizada em baleia branca.

Como todo grande livro, Moby Dick comporta diversos níveis de leitura, entre eles o aventuresco, o que justifica sua escolha para inúmeras adaptações infantojuvenis desde seu lançamento. Sua fruição plena é um grande mergulho nos arrebatamentos de que a alma humana é capaz: ira, vingança, obsessão, destino, comprometimento. Ahab, o icônico capitão a quem a baleia devorou uma perna, é tão incapaz de se comportar de outro maneira como Bartleby é de se conformar com tarefas que “preferiria não fazer” (como diz inúmeras vezes ao longo da noveleta que leva seu nome). Ahab não consegue se desviar de seu destino, como Bartleby não consegue atender às demandas da sociedade que dele solicita ao menos alguma explicação; corações em enigma, indecifráveis até mesmo para Dupin ou Sherlock Holmes – e por isso tão atuais, tão clássicos, tão instigantes e ainda tão cheios de voz para nos falar.    

Somos todos pequenos barcos no oceano infinito, ou irrelevantes (porque imediatamente substituíveis) Bartlebys em anônimos escritórios, todos homens modernos na imparável multidão de Poe “tenta[ndo] se compreender, buscando o seu lugar na sociedade” (FAEDRICH et al, p. 268). A semelhança das figuras todas citadas (de Melville, de Poe), reunidas em torno desse vaguear humano, lembra mesmo o flâneur de Charles Baudelaire, “o detetive da cidade, percorrendo a cidade das transformações urbanas que ocorrem no século XIX” (FAEDRICH et al, p. 269) em busca tanto do anonimato e da segurança das multidões quanto da identidade que (qual mítica baleia branca) sonha lá encontrar.

Em seu livro A alma encantadora das ruas, no texto que abre o volume, João do Rio discorre apaixonadamente sobre a rua, sobre como ela molda o homem moderno, como diz de seu caráter e vida e coração. Para João do Rio, flanar é (des)ocupação artística obrigatória, sem a qual é impossível conhecer de verdade um povo, uma cidade. Mas o homem precisa tornar-se relevante para o mundo – seja por seu apreço por enigmas, seja por sua resistência bartlebyniana, seja por perseguir baleias brancas; ele precisa de uma identidade (como as literaturas). Como diz o escritor, “o homem, no desejo de ganhar a vida com mais abundância ou maior celebridade, precisa interessar à rua” (RIO, 1997, p. 74, grifo nosso), ao mundo, à sociedade, à vida. Afinal, seja ele um Moby Dick ou um Quixote, seja ele um caso de Dupin ou de um Holmes, “esse formidável folhetim-romance permanente, composto de verdades, mentiras, lisonjas, insultos e da fantasia dos Gaboriau que somos todos nós” (RIO, 1997, p. 75) deve ser (Modernamente) único, idiossincrático, irrepetível – só então... só então... Humano.

Que neste domingo, dia 15 de novembro, este país de maricas vá às ruas, encantado-encantador, e recomece nas urnas a resgatar sua própria alma (plantando algo ainda maior para 2022), como fizeram há pouco os norte-americanos; como já escreviam e inspiravam, por seu talento e beleza, não Trump (ou seus fãs patetas locais), mas Melville e Poe.



REFERÊNCIAS

FAEDRICH, Anna; FIGUEIREDO, Eurídice. Literatura Comparada: volume único. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016.

RIO, João do. A alma encantadora das ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 3)

Está aflito com os arbores da vida adulta, meu filho do meio "emprestado". Desde que o conheci, quase dezessete anos atrás, rugas tensas sempre foram a principal marca de expressão em seu rosto arredio de dois anos e meio e de agora quase dezenove. A proximidade da obrigatoriedade imposta por tomadas de caminho tem feito com que meu menino "emprestado" seja visitado por enxaquecas, pequenas crises de ansiedade e mal-estares próprios do "coming of age": pra que lado vou? serei bom de verdade fazendo alguma coisa? conseguirei encher meu pai de orgulho e minha mãe também? que faculdade fazer? que vida profissional abraçar? que projeto de mim serei digno de ser?



Quando eu estava sai-não-sai de uma (primeira) depressão, nos idos de 1997, uma das bizarrices que coloriram aqueles dramáticos dias foi uma visita a uma numeróloga (essas coisas que a gente faz sem acreditar, deixando margem pro "vai-que...; vai-que te ajuda a se conhecer melhor"). Eu estava ainda em meu primeiro casamento e alguns anos distante da paternidade, mas a moça cravou, esotérica mas cheia de conhecimento e certeza de causa: "estou vendo três crianças fazendo parte da sua vida". Meus filhos (de sangue) Henrique vieram tempos depois, com diferença de seis anos entre eles. Jojô, Jônatas, chegou no meio, fruto do primeiro casamento de minha esposa, e devo dizer que fui talvez algo ardiloso quando de nosso primeiro encontro, talvez pela culpa que sentia por ter tido parte no lar desfeito que era agora sua casa: comprei meu menino "emprestado" com um bombom - um Serenata de Amor ou um Sonho de Valsa-, que ele muito desconfiado não recusou, e de lá pra cá celebro num canto muito meu do coração todo sorriso que recebo dele, toda manifestação de amor mais física que conseguimos trocar. Porque elas sempre foram um desafio muito difícil pra mim.

Semanas atrás, vendo um dos episódios da série "For all mankind", da Apple (que basicamente descreve uma linha temporal alternativa na qual os soviéticos chegaram primeiro à Lua), fiquei pensativo ao ver e rever a cena na qual o astronauta interpretado por Joel Kinnaman (de "The Killing" e "Altered Carbon") está na calçada de sua casa americana de classe média dedicando alguns parcos minutos de atenção ao filho que pouco o vê. Aulas de bicicleta. O pináculo do heroísmo americano grita com o pequeno, é rude ao avaliar suas quedas que se repetem, toda vez que o pai impulsiona a bicicleta sem qualquer outro tipo de apoio, sem vir correndo atrás, com a paciência de quem deveria esperar asas fortes de sua cria antes de qualquer empurrão para fora do ninho. Lembrei, claro, de meu próprio pai me ensinando a andar de bicicleta e como eu me recordo dele segurando a Monark pela parte de trás, conforme eu me ajeitava, ouvindo sempre sua voz firme e encorajante, até que o equilíbrio "acontecia" e, surpreso, eu olhava para trás para constatar que meu pai, afinal, me soltara dizendo (sem dizer): "Vai...".

Tudo isso para, claro, voltar a Jojô e a todo conflito que sempre foi para mim equilibrar meus desejos de oferecer carinho e por outro lado respeitar meus limites muitos consolidados de nunca querer tomar o lugar do pai dele, presença constante e absoluta (por exemplo) em todos os seus finais de semana desde a separação. Conforme ele ia crescendo e o "Tio Léo" se tornava uma parte não-negligenciável de sua vida afetiva, de sua formação (para o bem ou para o mal), íamos, eu sinto, tateando essa zona de penumbra na qual nosso amor por vezes podia se manifestar - mas de cada abraço que consegui enrolar nele, de cada beijo que logrei pespegar em seu rosto, dez outros ficaram pelo caminho, tolhidos por certo respeito a um outro papel (o de pai "pai") e a um outro lugar e tempo. E respeito à voz do sangue, também. Tenho, sempre tive, muitas dúvidas sobre até que ponto deve-se refrear apoio, afeto, mesmo em casos assim, quando um padrasto não quer confundir uma criança querida sobre quem é seu pai. De qualquer forma, meu menino "emprestado" é meu terceiro tesouro e, mesmo envergonhado por uma economia de afagos e carinhos que nunca fez jus ao meu amor por ele, digo aqui para sua leitura que não consigo imaginar um mundo onde nossas vidas não sejam assim, emboladas, na presença dos casamentos e na relativa distância das separações.

Enquanto me preparo - com alegria - para terminar minha licenciatura em Letras e começar uma nova carreira como professor de Língua Portuguesa e Literatura, são dele os mais marcantes exemplos iniciais que pretendo levar pra minha verde e crua prática: o de quando ele dizia "quatros", extrapolando como toda criança linguisticamente brilhante o fonema "s" marcador de plural que ele já identificara em "dois" e "três", e que prova o como já somos mestres no idioma que falamos; e o de quando sua mãe, sem tempo para dar uma explicação mais demorada sobre os elementos do cabeçalho de uma tarefa da escola, disse a ele simplesmente que o "ano" era sempre daquele jeito, o que fez com meu menino "emprestado", na série seguinte, tascasse o ano anterior, de maneira automática, em todas as datas que escrevia.

Hoje assistiremos a um desenho juntos, a convite dele (coisa rara), e espero que haja espaço, entre uma e outro cena, para um afago, quem sabe um cafuné meio sem jeito meu. E que ele continue, nas brechas que cabem a mim, a dividir vezenquanto comigo suas dúvidas, seus anseios ainda mal concebidos, seus choros e risadas, que seguem tão luminosas quanto nos distantes dias em que seu melhor amigo era um robô.





quinta-feira, 9 de abril de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 2)

O assunto "filhos" parece estar em alta. Seja porque estamos sendo obrigados a uma convivência familiar mais intensa com os pequenos (ou nem tão pequenos), seja porque as mortes pandêmicas extemporâneas nos fazem refletir mais sobre nossa própria existência fugaz - uma espécie de "Memento mori" que as GloboNews da vida e nossa conectividade 24x7 repetem incessantemente, com tom ora alarmista, ora pedagógico, ora necessário, ora apenas um pouco demais -, não são poucos os cronistas que têm visitado o tema nos últimos dias. Aliás, embora termo comum de dois gêneros, tenho apreciado bem mais AS cronistas que tenho lido nos últimos anos do que seus colegas de cromossomos mais variados: Tati Bernardi, em réplica a si mesma depois de meio que vomitar verdades sobre o duro (e nada róseo) viver-em-família, deu um belo depoimento sobre sua opção pela maternidade (ainda que em meio a muitas dúvidas), no texto "Tenha filho"; já Mariliz Pereira Jorge, às voltas com suas próprias angústias pessoais e a coragem que diz não servir sempre pra tudo, pondera em "O que fiz da minha vida?" se ter escolhido não ser mãe foi mesmo a trajetória mais acertada.

Fato é que, ao elegermos a vinda dos filhos - e aqui me lembro de uma professora de mestrado e doutorado na UFF, Beth Chaves, comentando os dizeres de uma amiga sua sobre o que mais a amedrontava na questão: a irreversibilidade da coisa; seu caráter "sem volta" -, rejeitamos todo e qualquer recall, toda e qualquer possibilidade de que nossa vida tenha a mesma relevância de antes daquele primeiro choro inaugural, daquela primeira tomada de colo, daquele processo de "desempoderamento" que o sangue do nosso sangue traz.

Sei que muito da sedução da paternidade/maternidade, para muitas pessoas, reside numa fantasia do filho ou da filha como continuação de si mesmo, como uma instância biológica de repetição que será capaz de fazer melhor o que você já fez, de consertar os erros em que você caiu, de satisfazer desejos e aproveitar oportunidades que você desperdiçou, de conseguir aumentar o tamanho do roçado ou do capital da empresa ou da clientela do escritório... Não à toa, a sabedoria popular parece traduzir tanto essa nossa fissura inconsciente (ou talvez sua porção genética nem a faça tão assim) quanto o determinismo que, muito antes de Gregor Mendel, nós como raça já sabíamos operar entre nós, animais: "filho de peixe, peixinho é"; "an apple doesn't fall too far from the tree".

(e aqui vou me privar de fazer comentários sobre política contemporânea e dinastias à brasileira, embora a língua e os dedos cocem que só)

Cervantes, já no primeiro parágrafo de seu "Quixote" (sim, como muitos de vocês, estou aproveitando a quarentena para tentar colocar antigos projetos em prática: ler finalmente a história do fidalgo da Mancha é um deles), segue por esse tom ao pedir desculpas logo de saída ao leitor dizendo que "gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais galhardo e o mais arguto que se pudesse imaginar. Mas não consegui contrariar a ordem da natureza, em que cada coisa gera seu semelhante" (página 41 da tradução de Ernani Ssó, em edição de 2012 da Penguin Classics / Companhia das Letras; os grifos são meus). Como todos os pais (e como Cervantes com seu livro), sempre desejei que o bem fosse a estação com mais dias no calendário dos meus três meninos; mas nunca foi sua semelhança com meus trejeitos, com meus contornos ou com meu passado o que me encantava em nosso romance-de-cavalaria-real a oito mãos. O que sempre me encantou mais foi o que eles tinham de só seu, o que os fazia criaturas únicas e jamais por essa terra antes imaginadas.

A novidade que cada filho traz não só à existência dos pais como ao universo em seu todo é que me parece ser o verdadeiro milagre, a verdadeira bênção de se fazer a opção do "tê-los para sabê-los". O indecifrável que há em cada um deles, o potencial indevassável de cada uma de suas vidas em processo é o que verdadeiramente traz esperança e alento ao mundo. Mais que nunca, são eles o futuro (mas um futuro em aberto, ainda velado e por isso instigante); nossas crianças.

Hoje faz aniversário meu filho Henrique, meu mais velho de três. Duas décadas me jogando na cara quantas solas de sapato eu já gastei, quantos dias eu já vivi, quanto ainda me falta para aprender. Com o muito que nos amamos, nunca conseguimos muita trégua para nossa convivência, com os sacolejos que minha separação da mãe dele nos fez (a todos) passar. Conforme ele tem crescido e se tornado "his own person" (recordando aqui um e-mail antigo que recebi do guitarrista Nick Barrett, do grupo inglês Pendragon), temos procurado construir mais pontes que abismos entre nós. Por exemplo, mandamos músicas novas um para o outro, tentando fazer melhor que os algoritmos de Spotifys e Youtubes da vida; sugerimos leituras, filmes; cultivamos conversas. No meu caso, procuro ser para ele alento "fingindo" que sei mais dos mistérios da vida, quando ele precisa de um porto seguro pra chamar de seu.

Henrique, ao nascer, foi um grande ato de fé sussurrado a mim (e à mãe dele) pelo mundo. Fé em que tudo se transforma, fé em que os filhos poderão porque serão; fé em que tudo passa. E que isso é bom.

No bairro onde moro, em Maricá, vivemos numa quase roça, onde há muita gente humilde e casas bem pobrinhas, onde o susto que se está vivendo pela atual emergência pública não deve ser pouca coisa. Ainda assim, as pessoas têm coragem e humanidade para impulsionar as outras pessoas, dar seu próprio testemunho de força e resiliência - como nessa porta que fotografei, em uma saída essa semana pra comprar pão.





Fé, gente (em Deus, na ciência, nos filhos, no irrepetível da vida...). Como escreveu minha anônima vizinha, tudo vai passar.

Pra terminar esse longo texto, queria deixar com vocês um poema escrito em 2002 para Henrique, quando eu estava em turnê com a banda Focus no Chile, e um áudio com a canção "Já vai tarde", do Phill Veras, interpretada pelo meu filhote, num desses dias em que estávamos procurando artistas que nos lembrassem o Los Hermanos.

Fiquem todos bem!

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Viñas da ira boa


Meu filho Henrique, sabotador de outras alegrias.

Meu amor Henrique, embotador de todos os demais prazeres.

Meu lorde Henrique, destruidor de cada um dos espaços de tranquilidade e desapego;de todas as horas em que eu me achava livre, sem dever nada a ninguém.

Meu captor Henrique, que cresceu olhos para me vigiar até quando dorme, através dos meus.

Meu encanto Henrique, que me tornou obsoleto e defensivo, despedaçado por tudo aquilo que não me cheira a teu; vinhos chilenos, paisagens de Viña ou amizades holandesas.

Leonardo Nahoum (Viña del Mar, duas da manhã de primeiro de novembro de 2002)

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Henrique Barreira interpretando Phill Veras

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Paternidade e a irrelevância súbita da própria vida (parte 1)

Minha primeira "cara" foi de biólogo; fui projeto disso nos meus primeiros anos de adulto-gente, quando comecei a fazer no Fundão, em 1988, três ou quatro semestres que me marcaram pra sempre, seja porque vivi ali amores (sofridos, mornos, com direito a filhos futuros e a revivals-repetição), seja porque ali conheci primeiro um mundo maior do que a provinciana Niterói, seja porque naqueles corredores fiz amizades que ainda perseveram, mesmo que predominantemente pautadas pelos grupos virtuais da vida. Por conta dessa primeira "cara", tive cedo contato com algum aprofundamento de leituras sobre evolução, darwinismo, etc., e daí me vieram brincadeiras, quando fui pai pela primeira vez, em 2000, de falar que "eu agora estava obsoleto para o universo; já havia passado meus genes pra frente - já podia morrer".

Embora me seja algo antipática a questão do lugar de fala como alijador da legitimidade dos outros para discutir o que quer que seja, não sou cego, porém, à sua relevância para a análise das posições e dos discursos. Da mesma forma que penso, por exemplo, que a homossexualidade de um autor deve ser, sim, levada em conta pelo pesquisador que se ocupa dos seus textos (como fiz, na minha tese, com o trabalho de Ganymédes José), acredito também que a paternidade (ou maternidade, não importa; a demiurgia da reprodução), quando chega, proporciona à pessoa um lugar de fala insubstituível, de ordem qualitativa. Ele não é pretexto nem justificativa, porém (quero deixar claro isso), para fazer das pessoas melhores educadores, melhores professores, melhores nada; apenas mudamos por dentro, passamos a entender o mundo por outro ângulo - é como ler Clarice Lispector antes de se apaixonar de verdade e depois.

Pedrinho, meu caçula, faz 14 anos hoje. Fruto muito querido do meu segundo casamento, ele já me fez, como o irmão mais velho, me sentir ultrapassado, superado, daquela forma que os filhos fazem sem que a gente se sinta ameaçado. Uma hora estamos lhes trocando fraldas, ensinando seus primeiros equilíbrios, na outra estamos vendo aqueles seres desenharem melhor que a gente, falarem uma língua desconhecida para nós, terem mais inteligência emocional, afirmar-nos suas individualidades, enfim.



O dia hoje é dele, Pedrusco, ele que, pequerrucho, já me surpreendia, aos sete anos, com a seguinte dedução, brotada no meio de uma conversa com o irmão do meio, Jônatas: "Todo mundo é estrangeiro pra todo mundo".

Aqui vão alguns poemas, então (meus e dele), devidamente desquarentenados por essa publicação, para celebrar esse dia que será de bolo de chocolate caseiro, fondue de queijo a quatro, chamadas virtuais e amor-perseverança.

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SOU UM LEÃO

Não sei voar ou cantar bem.
Mas sou alguém.
Posso não ser amigo de ninguém. Mas sou alguém.
Sendo eu mesmo, ninguém me derrota, ninguém me bota no chão, não sou um rato, sou um leão.

Não tenho medo de nada, pois nada me acertará, nem uma onda de tristeza, nem uma avalanche de escuridão.

Nunca caio, se eu caio, me levanto. Tudo que falam não me importa, sejam suas palavras xingamentos ou críticas, uma palavra ruim, nada vai ser o meu fim.

Pra mim, o fim não existe, só a continuação, sou um tigre, sou um leão.

Pedro Ordoñez Pache de Faria, 19 de maio de 2016

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INSILÊNCIA

(filho é tão bom, mas dói)

(dói por doer)

(só por ser o que é)

(nem é o susto de vocês, que é um coração que não bate mais por dentro e por isso apavora, só por estar fora)

(mas é semente insilente, um dia quente, de latejo-gozo, um jorro que virou gente)

(e a gente, quando sente, vê que a lida de repente nunca mais é só presente)

(é antes os dias deles que a gente perde, os minutos cada vez mais ausentes, os amores que nos tomam a frente)

(filhos vêm para roubar a vida, dando em troca tudo... e a gente nem sente, nem sente...)

Leonardo Nahoum, maio de 2010

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BEM-SONHADO

Dormiu, meu amor de 4 anos...
Dormiu sereno, seguro, amado, quente e calmo...

Dormiu debaixo do meu teto, da minha dor e alma, debaixo das minhas asas zelosas e atentas, do meu riso metade dele, metade do irmão.

Dormiu pra acordar ao meu redor amanhã, pra me assombrar com uma riqueza que nunca tem cara de repetição.

Dormiu meu filho, dormiu e sonha...
...
...e sonha o Bem.

Leonardo Nahoum 22 de maio de 2010

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Rondônia 451

O romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, tem me acompanhado desde a infância exercendo sobre mim certo fascínio que muito provavelmente se explica pelo meu amor aos livros e pelo horror que me causa a ideia de sua destruição deliberada. Para exemplificar melhor minha relação com essa linda invenção humana do universo da escrita, nada melhor do que esse pequeno texto que minha esposa, em 2018, escreveu sobre mim, às vésperas do meu aniversário:


Distopia publicada em 1953 que descreve uma sociedade de livros proscritos na qual "bombeiros" (firemen...) queimam obras, perseguem criminosos-de-pensamento-e-opinião e onde a resistência deve se dar, artesanalmente, pela resiliência da memória (as pessoas, para salvaguardar o legado humano literário, começam a decorar trabalhos inteiros, colossos como Moby Dick, se responsabilizando pela sua preservação em meio àquele verdadeiro holocausto), Fahrenheit 451 me inspirou, décadas atrás, a começar uma noveleta de ficção científica deixada pela metade, de título "451 soldiers" (à qual eu talvez retorne um dia), e plantou em mim o interesse pelo mistério dos livros perdidos, dos manuscritos extraviados e, em última análise, pelas violências da censura.

O título desta postagem, obviamente, é uma referência à denúncia que correu todos os noticiários ontem envolvendo o memorando da Secretaria de Educação de Rondônia, às suas coordenadorias regionais, no qual se ordenava o recolhimento de livros considerados de "conteúdos inadequados às crianças e adolescentes". E, antes que me acusem de exagero, já que não houve (ainda...) nenhum Bücherverbrennung (termo alemão que ficou associado à queima nazista de livros promovida na Alemanha entre 10 de maio e 21 de junho de 1933), ressalto que o mais importante em "Fahrenheit 451" não é tanto a imagem das piras de papel que tem suas almas transformadas em cinzas, mas sim o silenciamento, o fazer desaparecer... e isso se dá tanto com a queima quanto com o encaixotamento rondoniense (segundo a reportagem inaugural, do Estado de São Paulo, os livros condenados pelo Secretário de Estado da Educação de Rondônia, Suamy Vivecananda Lacerda de Abreu, já estavam separados dentro de caixas, em algumas escolas, à espera da coleta).

Quanto retomei pra valer minha vida acadêmica, em 2012, com o mestrado em estudos literários, levei comigo, como projeto de pesquisa, uma análise sobre a série "Inspetora", de Ganymédes José, coleção publicada no Rio entre 1974 e 1988. Além do interesse por literatura infantil (e popular) em geral, motivado em parte pelo fato de meu filho caçula estar à época se alfabetizando, havia também,como elemento fortemente instigador, a descoberta que eu fizera de um livro da coleção aparentemente não publicado ainda lá em 1974. O título aparecia em listas ao final de alguns volumes, mas depois sumiu, nunca veio a público. Pensei logo, claro, que poderia haver ali naquela pena alguma galinha inteira, como se diz, e coloquei em meu projeto a hipótese de (auto)censura, isso ainda sem saber do que se tratava o tal título suprimido (o que deveria ter sido o  numa série que teve outros 30 e poucos episódios...) e se seria possível ainda encontrar seus originais. Acabei localizando o tal manuscrito perdido, sua leitura me deixou convicto, sim, que a autocensura de fato ocorrera (o original em questão chamava-se O Caso do Rei da Casa Preta e falo sobre ele tanto em minha dissertação quanto em minha tese de doutorado), e toda a história avivou ainda mais em mim o interesse por esses cerceamentos de expressão e de circulação de ideias. No caso brasileiro, especificamente, no que se refere ao período da ditadura militar, nos mecanismos de censura indireta, provocada pelo medo de represálias econômicas ou penais.

Lendo a primeira aula da disciplina "Literatura Portuguesa I", fui parar nas primeiras páginas do texto "Aula", de Barthes, e não posso deixar de relacioná-las a todo esse episódio e à todo o arcabouço conceitual envolvendo Infância, Literatura Infantojuvenil e a tutela que tão naturalmente nos arrogamos de exercer sobre o que deve ou não ser lido pelos pequenos, sobre a linha que coloca "adequado" desse lado e "inadequado" do outro. Refletindo sobre os mecanismos do Poder na sociedade, sobre a ubiquidade de sua influência e sobre a inescapabilidade de sua presença em todas as existências, subjetividades e relações, Barthes conclui que isso se dá porque não é possível ao homem existir fora da Linguagem; e a Linguagem, por mais que sirva (como ele mesmo diz) aos desvios e às transgressões (quando se encarna como Literatura), é, por natureza, mecanismo de força, de opressão, que não apenas instrumentaliza comunicações, mas que conforma o pensamento, que obriga seus usuários a esse ou àquele padrão; a ter sujeitos antes de verbos ou a ter, digamos, apenas esse ou aquele pronome para escolher.

Acompanhando as notícias sobre o "Rondônia 451", vemos o Secretário de Educação dizer que o tal memorando fora motivado por denúncias de que alguns livros conteriam palavrões! Impossível não sorrir diante da violência e caretice de tal ingenuidade, por mais perigosa que ela seja por estar no poder; e impossível não pensar de novo em Barthes e refletir que justo os palavrões talvez sejam nosso primeiro teste, como seres humanos, com o tal universo da Linguagem e com as estruturas sociais que se encontram ali refletidas; os edifícios do Inadequado, as alamedas do Permitido, as vielas do Apropriado. O que meu mundo social me deixa dizer ou não e o que meu mundo social, por sua vez, permite que me digam.

Na pouca literatura teórica que já consegui vencer sobre literatura infantil (todo dia, socraticamente, descubro que nada sei), já percebi que a "criança tutelada" ainda é uma "vítima" da sociedade como um todo, de nossas vontades de exercer pequenas censuras cotidianas traduzidas em listas de faixas etárias e adequações. Apesar de por vezes evoluirmos na questão do Infantil atribuindo-lhe certa contextualização histórica e de processo, na maioria dos casos a criança ainda é tratada como abstração cheia de universais, imutável, que merece apenas proteção contra o mundo. Como se a Linguagem fosse só fonte de ameaça e poder nocivo, e não o berço também da empatia, do desvelamento do mundo e do paralelismo das dores e das alegrias do próximo.

Estou terminando a edição de um novo livro, de autoria de Hélio do Soveral, e não por acaso trata-se de mais um caso (na minha opinião) de autocensura inspirada, em 1971, pela atmosfera de opressão oferecida pelo regime militar. Nesta aventura popular na qual Soveral narra, em primeira pessoa, a história de um arqueólogo norte-americano que descobre uma tribo de índios brancos descendentes de vikings, o autor aproveita para criticar os nacons (a casta de guerreiros - qualquer semelhança com castrenses é mera intenção) e sua capacidade de administrar a tal sociedade perdida, após terem assumido o comando com um golpe militar... Porque me deixa muito feliz resgatar um livro das garras das chamas fahreheitianas, das caixas rondonienses da vida e das gavetas (indiretas ou não) da ditadura - do silenciamento, enfim-, divido com vocês, a seguir, para terminar essa longa digressão, os últimos parágrafos de meu Posfácio à obra (de nome A Fonte da Felicidade), já que não me ocorre nada melhor como fecho (e porque é preciso denunciar que a censura e as tentativas de tutela idiota e idiotizada continuarão):


            Em artigo de 27 de maio de 2019 na Folha de S. Paulo, o filósofo Luiz Felipe Pondé, ao contestar as supostas causas da piora no humor dos cada vez mais depressivos jovens latino-americanos, afirma não concordar que, como diz a pesquisa a que se refere, a perseguição à liberdade de expressão possa estar verdadeiramente entre elas, as causas (ainda que assim declarado pelos entrevistados). Segundo Pondé,
a maioria esmagadora da população não liga para liberdade de expressão. Só quem liga para ela são jornalistas, professores, artistas ou intelectuais em geral. A menos que a repressão sobre a liberdade de expressão torne seu jantar impossível, ela que se dane. (PONDÉ, 2019. Grifo nosso.)


Pode até ser que, como afirma o filósofo, preocupações com a censura e com o cerceamento da circulação de ideias em toda e qualquer sociedade sejam uma espécie de "sexo dos anjos", isto é, um debate algo abstrato e elitista que não cabe na maioria das mentes mais ocupadas com a urgência de ver o pão servido sobre a mesa. Para aqueles privilegiados que garantiram já o jantar, porém, e que talvez por isso voltem suas inquietações para outras esferas, é de extrema importância revisitar estes períodos em que o pão do espírito nos foi negado; negado não por escolha, mas por imposição. A publicação em livro dos originais silenciados de A Fonte da Felicidade, de Hélio do Soveral, recoloca sobre nossas mesas esta quase apagada amostra de nossa surpreendentemente engajada literatura popular; este jantar tornado impossível (mas agora não mais) pela ditadura militar dos anos 1970.




PONDÉ, Luiz Felipe. "World Peace". Folha de S. Paulo online. 2019. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/luiz-felipe-ponde/jovens-burguesia-luiz-felipe-ponde/>. Acesso em: 28 mai. 2019.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A Biblioteca dos Amores Não Vividos

Em vários números da HQ "Sandman", a começar pelo #22, Neil Gaiman brinca com uma biblioteca de livros inexistentes, jamais escritos, mas sonhados, que existiria no reino de Oneiros (como o Mestre dos Sonhos era conhecido entre os gregos). Lá, como se pode divisar no detalhe da página 2, reproduzida abaixo, estão preciosidades como "A estrada perdida", de J.R.R. Tolkien, "A consciência de Sherlock Holmes", de Doyle, e "O homem que era outubro", de Chesterton.




Vários outros autores já experimentaram com essa ideia de uma biblioteca absoluta, com todos os livros escritos e ainda a escrever (Borges é um deles, se não me engano), e não são poucos os volumes a explorar esse nosso fascínio por manuscritos perdidos ou simplesmente imaginários, recantos virginais da produção de escritores queridos e de quem saudaríamos páginas novas como quem reencontra amigos que julgávamos perdidos para sempre.

Mas e os amores apenas imaginados? E os amores nunca vividos, nunca passados de botão? Haveria em algum lugar uma biblioteca para preservar (já com começos, meios e fins) todas as histórias do coração que nunca foram, por conta desse ou daquele desencontro, por culpa dessa ou daquela carta extraviada, insinuação não compreendida ou mesmo... declaração de amor nunca decifrada?

No dia primeiro deste ano, enlevado tanto pelo espírito ano-novista das resoluções, que nos faz sacolejar gavetas empoeiradas para jogar fora papéis, tranqueiras do desuso e outros obstáculos das arrumações da vida (material e do espírito), quanto pelo memória do meu avô (filho de libaneses que aniversariava justo no dia inaugural de janeiro), lembrei de repente de um livro que ganhara quando tinha 18 anos (aí pelos finais de 1988), ou seja, pouco mais de 31 anos atrás. Nele, na folha de rosto, a responsável pelo presente, de nome Cátia (ou seria Kátia?), pespegara uma dedicatória enigmática, em árabe (!?), que provocou protestos meus na hora, claro, mas aos quais a autora apenas retrucou com um meio sorriso e um levantar de ombros, sem oferecer arremedo ou chances de tradução.




Não lembro muito bem dela, dessa Cátia-com-K-ou-com-C; recordo-me que talvez a tenha conhecido em alguma festa de faculdade dessas que agregam gente de vários cursos, no Fundão, ou talvez em algum outro evento de gente da minha idade, no Ingá, em Niterói, porque tenho vislumbres, por entre os neurônios falhos, de conversas nossas durante a viagem de 998 até o Fundão. Ela tinha pele clara, cabelos talvez um pouco crespos, mais para claros que escuros, olhos expressivos, e fazia Letras, provavelmente Português-Árabe. Acho que, à época, cheguei a desconfiar que havia algum interesse por parte dela em mim, já que não era comum para a criatura desengonçada que eu era conseguir entabular trocas verbais mais demoradas com o sexo oposto, mas nunca houve nada entre nós, nenhum "handshake protocol das relações humanas" que levasse os papos-que-nem-flerte-eram (de minha parte) a algum outro patamar. Numa das últimas conversas de que tenho lembrança, cheguei a comentar com ela que estava enrolado com uma menina veterana do meu curso (Biologia), mas que a tal já teria um noivo-namorado e eu estava no meio da confusão (o resultado foi a mocinha voltar pro cara e eu amargar umas duas semanas de fossa pelos corredores do Instituto). Ela a tudo ouvia e só meneava a cabeça, complementando o olhar de reprovação (e tristeza?) com um alerta: "- Acho melhor você sair dessa, é furada". Não saí; fui saído. Sofri lá, paguei as penas, e nunca mais (que me lembre), passados meses e anos, voltei a ver Cátia-com-K-ou-com-C.

O livro que ela me deu, porém, foi ficando; atravessou 5, 6, 7 mudanças, separações, casamentos, recasamentos (que é quando você volta a casar com quem já fora casado), e permaneceu sempre em alguma prateleira minha, qual esfinge que, além do conteúdo inexplorado (porque nunca cheguei a lê-lo), ainda ostentava o tal enigma que me deixava sempre com gostos de analfabeto na mente, mas que eu nunca me esforçara por decifrar. Em tempos pré-internet, eu teria que ter ido a algum curso de Letras, pedir a alguém que lesse aquelas algaravias pra mim...

Sentado ao computador no dia primeiro de janeiro de 2020, com teclado, mouse, janela do WhatsApp Web aberta e amigos de toda parte a um clique de distância, tive um estalo: será entre os meus colegas da Biologia (ok, ok, curso que não terminei...), não haverá alguém que tenha um contato que saiba ler em árabe? Tasquei algumas linhas no grupo, mais a foto da tal dedicatória, e a tradução não tardou a vir (graças a um neurocirurgião no Cairo, insone, que respondia à minha amiga bióloga e juiz-forana às 3 da manhã):

"Para Leonardo;
Eu te amo".

Dia desses, conversando com meu filho mais velho outra vez, disse a ele (que me perguntava pela enésima vez por que eu ficara tanto tempo casado com a mãe dele se havia tantos problemas e dissonâncias entre nós) que eu não era de ficar retornando ao passado com esse tipo de amargor, querendo ter vivido outros caminhos, outras escolhas, outros trajetos. Retruquei que tudo o que passamos nos traz, de certa forma, ao momento presente e que, como não há nenhum outro momento, não se deve encarar a vida assim, numa espécie de ritual nostálgico de eterna lamentação por conta das estradas não trilhadas. E completei, com lágrimas nos olhos, que se eu tivesse me separado da mãe dele antes de 1999 ele não teria nascido; e eu não queria, de modo algum, viver num mundo sem ele.

Então, não é com nostalgia ou saudade ou tristeza ou mesmo com vontade de ter vivido esse-amor-que-não-foi que eu sorri ao ler a tradução da dedicatória que levou 31 anos e uns trocados para ser devidamente apreciada. Como comentei à minha amiga que me prestou o favor, é sempre muito honroso ser merecedor do amor de uma mulher (frase do Jabor?); não há nada que dignifique mais um homem. Mas fiquei também pensando naquele menino de recém-completados 18 anos e se haveria nele matéria humana que justificasse aqueles sentimentos por parte de alguém; no caso, por parte de Cátia-com-K-ou-com-C.

Espero que ela esteja bem, feliz e viva, e tenha topado ao longo da vida com gente mais merecedora do seu amor do que eu (que precisei de tantas comodidades e conveniências tecnológicas para enfim desvendar aquele charmoso e delicado mistério). Tudo de bom pra você, Cátia-com-K-ou-com-C! E obrigado pelas palavras!


P.S.: Uma coisa eu acho que devo a essa história (mais ou menos da mesma maneira que ouvi de uma tia - que não botava muita fé no meu casamento - quando meu primeiro filho estava pra vir: "A história de vocês já merece um filho"): embora não exatamente no topo da minha lista de interesses, penso que o livro merece uma leitura, que devo ao livro (e a quem mo presenteou - e esse "mo" saiu bem à Eça, não?) que ele seja ao menos lido. Tá certo que na época ele deve ter meramente servido de conduto para aquela dedicatória, que permaneceu não compreendida por tantos anos; mas é uma maneira de honrar, de certa forma, aqueles anos de descoberta, de caras e corações quebrados, de amores vividos e outros desencaminhados, quando eu embarcava no 998 naquele ponto mal ajambrado da rua Ernani Mello em direção aos mistérios do ensino superior (da vida) lá nas lonjuras do Fundão.






quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

O preconceito nosso de cada dia

Na sexta passada, dia 3 de janeiro, fui com minha esposa (convite dela para uma noite a dois, o que foi muito bom, all considered...) assistir a "Minha mãe é uma peça 3", de Paulo Gustavo, humorista que é um dos poucos por aí que consegue tirar de mim risadas fáceis.

Comentando com meu pai depois, que nisso é parecido comigo (não oferece suas gargalhadas a qualquer coisa - filme, peça, esquete, piada, atriz, ator), concordamos que o texto do filme nem é lá nenhum prodígio de boas tiradas, abusando de palavrões algumas horas e de certas situações um pouquinho inverossímeis; mas Paulo Gustavo, na pele da personagem maravilhosa, Dona Hermínia, é fantástico. Ele conserta qualquer mau diálogo, qualquer cena mais fraquinha, qualquer roteiro ruim (e nem era esse o caso, não). Gostei da diversão que o filme proporcionou, ri um bocado e fiquei feliz de ver as quase duas horas como, afinal, uma espécie de brado (sem volume no máximo, pra não distorcer o som e a mensagem) de tolerância, de celebração do amor - qualquer amor - em tempos nos quais as pessoas voltaram a se sentir à vontade para fazer piadas sobres gays, negros, mulheres e as outras opções do costumeiro cardápio de minorias.

Sempre fui particularmente consciente de que a existência gay deveria merecer menos olhares tortos sociais; mas não de pronto, claro. Cresci em meio a um ambiente onde os papéis de gênero sempre foram muito marcados e onde muitas das piadas e "brincadeiras" feitas (ainda não se falava em bullying) entre meninos (amigos ou irmãos) envolviam homossexualidade. Claro, sei que não estou sozinho. Se posso afirmar que não lembro ter ALGUMA VEZ na vida feito gracejos racistas (como o competente e perdoadíssimo por As, Bs e Cs William Waack alegadamente fez on tape), seguramente irei para o inferno se depender das jokes e brincadeiras usando palavras como "gay", "boiola", "boneca" e quetais. Até hoje é difícil superar o hábito arraigado; volta e meia, escapole uma brincadeira com esse tom que, no fundo, é apenas preconceito e mau gosto e desrespeito pelo espaço do vizinho.

Com a proximidade e o aumento da possibilidade da eleição de Jair Bolsonaro, antes mesmo de 2019, percebi que dávamos muitos passos pra trás em tudo que se relacionava a respeito ao outro, aos outros, ao diferente. Se no começo, dez anos atrás, eu era um dos que se incomodavam com os excessos do politicamente correto, hoje penso duas, três vezes, e na maioria delas me alinho com os ofendidos: como disse o Guga Chakra, se o "white face" ofende, desculpe, Eliane Cantanhêde, mas tem problema, sim: por que fazer? por que oferecer sofrimento desnecessário àquele ser humano que reclama? Um dos meus escritores preferidos, Carlos Figueiredo, autor da série "Dico e Alice", umas que estudei no doutorado, diz que penou por muitos anos atrás de uma bússola moral que o satisfizesse. Encontrou ela nos livros de uma autora (a referência me escapa agora) que aponta para isso: todos deveríamos diminuir o sofrimento desnecessário na vida e no mundo, todos deveríamos trabalhar por isso, por sua diminuição.

Ver o filme de Paulo Gustavo, com seu casamento gay e suas histórias tão humanas, foi bom para lembrar o quanto se pode recuar civilizacionalmente em tão pouco tempo... O que parecia já conquistado, sólido, direito pétreo, vira fumaça, desaparece, em nome do direito de quem quer viver a vida, em todos os espaços e tempos, como quem está sempre no botequim da faculdade, em meio aos amigos héteros-brancos-zona-sul (lembrei também do selfie-video do estudante de Direito gritando que ia "matar a negrada" e que "agora é Capitão, porra!"). Por isso, há que se estar alerta, há que se combater os avanços da obtusidade - por muito que esteja tão difícil. Três anos atrás, eu debatia com amigos da faculdade, no WhatsApp, porque alguém disse que não gostaria de convidar para o grupo um ex-colega recém-encontrado por ter visto no perfil dele frases pró-Bolsonaro. Surpreso com aquele... preconceito... eu argumentei que os potenciais eleitores do deputado, na casa dos 20% à época, não poderiam ser todos nazistas-racistas-fascistas - e que precisávamos manter abertos os canais até para entender o que estava acontecendo. Inclusive, procurei desencorajar o hábito que grassava de chamar o sujeito, tosco que seja, de "Bozo", "Coiso", etc. Um erro não conserta o outro, né, Roberto? Semanas e meses depois, fui descobrindo à minha volta outros eleitores dele: meu pai, meus irmãos, vários tios, etc... Preconceito é mofo perigoso que se espalha democraticamente (rsrs), em todas as direções.

Ano passado, ao saber da série que sairá pela Netflix baseada na HQ "Sandman", resolvi pegar minhas revistas pra ler e percebi que nunca havia lido toda a saga - devo ter parado aí pelo número 20 e pouco, talvez. Ao chegar no #37 (lançado originalmente em maio de 1992), dei estupefato com o seguinte quadrinho, no qual Alvin (nome de batismo da transsexual Wanda) está para ser enterrado em sua pequena cidade natal. Vejamos o que uma amiga da família tem a dizer sobre ele e sobre diversidade de gênero e de opções sexuais:



Pois é, Damares... Meninas de rosa, meninos de azul... Neil Gaiman já esfregando essas bandeiras na cara de seus leitores 28 anos atrás e o que parecia avanço e maior tolerância vira fumaça, como a do cigarro que se vê aí em cima, nos traços de Shawn McManus.

Por volta de 2012, give or take, contratei um rapaz para estagiário da consultoria na qual eu trabalhava. Coordenei o processo de seleção, fiz a entrevista, etc. Ele era o melhor e até mesmo escrevia melhor que TODOS os candidatos a redatores (ele estava entrando como designer gráfico). Falava muito bem, estava bem vestido, testes muito bons, só coisa positiva. Meses depois (ele não era nenhum gay do tipo "clássico", não tinha trejeitos de nenhum espécie, por exemplo; não dava "pinta", como é costumeiro dizer), fiquei sabendo que o rapaz era homossexual, inclusive vivendo com um namorado-marido mais velho. Foi então que percebi o quanto das piadas que eu mesmo fazia naquele espaço onde todos nós habitávamos durante as horas de trabalho envolvia as mesmas "brincadeiras-com-viado" da minha infância, adolescência e boa parte da vida adulta - e, noves fora qualquer coisa, pensei logo no possível incômodo do qual eu era o causador. Passei a me policiar e, simplesmente, entendi que os tempos haviam mudado, que eu devia mudar e acompanhar o que simplesmente eram regras de convivência mais respeitosa, e que aquelas coisas NUNCA haviam sido legais de se fazer.

Mas aí vem 2018, 2019, e todos achamos que o valor maior é o de ofender, o de viver códigos de comportamento cospe-grosso, e que nosso direito de ferir os outros em sua diferença é maior do que o direito à diferença em si. Tá foda, viu... (e desculpem o palavrão, mas às vezes é só o que resta em termos de linguagem)

Se puderem, vão a "Minha mãe é uma peça 3"; além de ser cinema nacional, que merece o apoio, é diversão certa e fígado desopilado.

P.S.: Uma coisa que não entendo, e isso tem um pouco a ver com o curso de Letras que estou terminando... Como uma produção tão bem cuidada como a do filme sugerido deixa passar, na carta aberta pessoalíssima ao final, reproduzida em tela, erros crassos (crase) que acabam pinicando no olho desse para-sempre filho de professora de Português? Já fui muito chato e bobo com coisas assim, gramatiquices e ortografices, e mudei muito minha postura depois das disciplinas de Linguística na faculdade (a gente tende a ser mais generoso com o idioma e com seu uso, coisa que me fez gostar menos das sempre inteligentes e - tecnicamente - bem urdidas colunas do Eduardo Affonso... ou será só uma desculpa, coisa de escritor invejoso que prefere não ler mais textos que gostaria de ter escrito? :-) ). Ainda assim, me parece um desprestígio para com a profissão de copidesque, de revisor... PAGUEM alguém pra ler seus textos, por favor. A gente NUNCA escreve tão bem (a norma culta) como acha que escreve - valorize o profissional de Letras, mesmo que seja pra depois não ficarem apontando dedos para sua obra por conta de erros que deveriam ser (e são!) desimportantes.


quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Sê valente, sê uma bênção...

Meu ano começou com almoço em família, chester e bacalhau, mas também com uma descoberta com 31-32 anos de atraso (inspirada pelo aniversário do meu avô, que era de primeiro de janeiro de 1922). Ia escrever sobre ela hoje, mas a vida se meteu no meio e a postagem será outra (a tal descoberta fica pra depois).

A vida não tem sido fácil, particularmente de meados de 2017 pra cá, desde o último emprego de carteira assinada. A dinâmica e as complexidades de uma vida a dois são muito mais do que os problemas causados pela assimetria de um casal onde a renda está capenga, com a parte homem mais dono-de-casa que provedor de dinheiros; mas que a falta de grana berra e emascula e abate e dificulta tudo, isso é fato. Concreto. E pesado. Não estou resumindo a dureza dos dias à parte financeira (sou muito falho e difícil em tantos outros setores...), mas não é à toa que há por aí ditados envolvendo portas, dinheiro, amor e janelas.

Temos navegado pelos tempos ruins com muitos sacrifícios feitos, na busca comum de manter o barco (do casamento, da família) à tona, mesmo quando ele pareça, por vezes, estar à deriva. Sou grato pela nossa resiliência - as coisas poderiam estar sendo bem mais difíceis, é preciso dizer. Mas há dias de palavras duras, de desencontros mais doloridos, e esse dia 2 começou assim.

Entrar nos detalhes do espinhaço (a palavra me evoca tanto cumes desafiadores quanto espinhos) seria exposição demais, e esses textos, por muito que eu os queira pessoais, não se devem prestar a esse fim.

Minha esposa, Ana Roza, é dona de uma inteligência emocional perto da qual me sinto raso, e com a qual posso apenas diligentemente tentar apre(e)nder. Já estivemos juntos, já nos separamos, voltamos a nos reunir (com pleonasmo e tudo); e dessa fase 2.0 ela disse uma vez, com propriedade certeira, que se tratava de um amor "vivo, apesar de espancado". Foi numa mensagem de WhatsApp, no ano passado, por conta do aniversário de nosso filho comum:

[19:02, 02/04/2019] Ana Roza: te amo
[19:02, 02/04/2019] Ana Roza: nosso filho tem 13 anos
[19:02, 02/04/2019] Ana Roza: e é muito inteligente
[19:02, 02/04/2019] Ana Roza: e esperto
[19:03, 02/04/2019] Ana Roza: inventa histórias
[19:03, 02/04/2019] Ana Roza: é charmoso
[19:03, 02/04/2019] Ana Roza: gosta de dançar e dança melhor do que nós dois juntos
[19:03, 02/04/2019] Ana Roza: ele é bonito e tem cheirinho de açúcar
[19:04, 02/04/2019] Ana Roza: é muito sensível, apesar de desligado
[19:04, 02/04/2019] Ana Roza: é meio escorregadio mas também muito companheiro
[19:05, 02/04/2019] Ana Roza: ele é a parte viva de um amor
[19:06, 02/04/2019] Ana Roza: um amor vivo
[19:06, 02/04/2019] Ana Roza: apesar de espancado
[19:06, 02/04/2019] Ana Roza: mas vivo
[19:07, 02/04/2019] Ana Roza: e esperando por novos ventos que virão




O dia hoje, como já disse, começou não com afagos no amor vivido, mas com algum espancamento (mea culpa) do qual eu espero que ele se levante, luvas em guarda, passos procurando a proteção das cordas no canto do ringue, e se mostre capaz ainda de mais uns rounds enquanto os novos ventos ainda são brisa fraca, ainda que prometedora...

Se o dia começou com a lembrança de uma flor recusada, ofereço como resposta estas linhas e o poema que se segue, para Ana Roza, escrito para ela em 14 de junho de 2011 (quando ainda faltava quase um ano para terminarmos a casa onde moramos hoje com cães, filhos, livros, discos e - como se vê - um bocado de emoção):


 valente,  uma bênção...


Quando eu toco música (em você)
e seu corpo me acompanha,
(e geme e grita e xinga e morde e beija e arranha)
fazemos eco.

Quando eu verto água pelos olhos
ou por onde não tenho pálpebras
e você também desevapora
em cachoeira espessa por sua flor de rosa,
fazemos eco.

Quando nosso filho dispara perguntas,
e elas são as mesmas que fizemos eu e você,
em nossos anos de criança,
fazemos eco.

Quando sentimos dores tortas,
da estrada que não é a mesma do primeiro livro,
mas também as alegrias novas, dos capítulos que ainda se farão,
fazemos eco.

Quando nos tomarmos frente a Deus, transformados,
seduzidos, avivados, floradas das cores que quisermos,
prontos a entrar na casa que fará sombra para o nosso jardim,
faremos eco... do tanto que sempre tivemos, um pelo outro, de amor.

(Leonardo Nahoum, 14 de junho de 2011)